domingo, 5 de novembro de 2017

A verdade oculta de mim, de você e de nós

    Uma sondagem das práticas da opinião pública

  
      Com as desordens das práticas recorre-se através do apelo à opinião pública e à sociedade, onde a opinião pública torna-se rainha, comanda essas decisões contraditórias e o empirismo dos políticos encontra sua opinião sobre tal justificação, pois as decisões políticas devem seguir as expectativas da opinião pública e que o direito deve conformar-se à evolução dos costumes. E, que a referência essencial não está do lado do poder político, mas do lado da sociedade e de suas “evoluções”; o poder assume por missão obedecer-lhes.


Entretanto, aos “franceses” em geral, vê-se bem que o apelo à opinião pública é uma maneira de esconder a si mesmo sua incapacidade de decidir. Todavia na aparência nada que não seja aceitável, quando se declara, que a descriminalização da droga é perigosa, quando o ministro Bernard Kouchner um político francês, ministro dos Negócios Estrangeiros francês entre 2007 e 2010, acrescenta que ele mesmo se opõe, e conclui que de toda maneira a opinião pública não compreenderia tal medida. Conhece-se também que nada é mais manipulável, evolutivo e difícil de captar do que a opinião pública. Esse conceito é o fruto seja de aproximação não verificada, tem-se por certo adivinhar intuitivamente a natureza das opiniões dessa opinião, seja de construções operadas por sondagens, portanto por meio de instrumentos sem dúvida afinados, mas nunca de todo confiáveis, e que operam uma mediação da dita opinião que de modo algum é tão neutra quanto se quer sustentar.  Porém, análises muito sérias mostraram a que ponto essa opinião é capaz de mudar de opinião justamente quando é persuadida de que as próprias elites evoluíram, e é efetivamente o que operam as sondagens. A renúncia política imediata esconde mal que se remete assim a uma submissão futura à opinião, elevada ao nível de soberania popular.
      Trata-se apenas de uma caricatura de democracia que erige em julgamento fundado uma sensação passageira, não informada das consequências ou do alcance da pergunta: identifica a vontade popular com a expressão de impressões momentâneas e descontínuas, conforme os humores e os sentimentos do instante. Entende-se por vontade popular muito exatamente o inverso do que Rousseau designava sob o nome de “vontade geral”, que suponha pôr de lado as pulsões imediatas e as vontades individuais particulares. Tais impressões transitórias podem tornar-se objeto de manipulação e sempre refletir o que os grupos de pressão ou, os próprios poderes políticos desejam.
     Numa hipótese construída, considerada artificial, a opinião não pode fornecer uma base política séria. Exemplificando temos que no discurso perante o Comitê Consultivo Nacional de Ética de 28 de novembro de 2000 o primeiro-ministro Lionel Jospin, depois de ter descartado em um primeiro momento tal eventualidade, propunha que a pesquisa científica se estendesse às células-tronco embrionárias de embriões obtidos por clonagem (VALADIER (b), 2003: 29). Apresentava duas justificações para sua nova posição: uma negativa, formulada de modo interrogativo: Motivos que dependem de princípios filosóficos, espirituais ou religiosos deveriam levar-nos a privar a sociedade e os doentes dos avanços terapêuticos?  A resposta é óbvia, porque quem recusaria aos doentes os avanços terapêuticos? A formulação do problema, na aparência evidente e articulada com base na reafirmação dos princípios, leva consigo sua solução: na realidade, implica a desconsideração dos princípios filosóficos, espirituais ou religiosos evocados, para logo anulá-los.
       A segunda justificação, positiva, traz maciçamente para argumentação desvalorizante o apoio da sociedade francesa inteira; prossegue o primeiro-ministro: estou convencido de que a sociedade francesa aspira a que a consideração dos valores fundamentais enquadre, mas não torne impossíveis, o avanço dos conhecimentos científicos e suas aplicações potenciais no domínio da saúde humana. Mantendo assim a aparência do apelo aos princípios, mas sua argumentação os esvazia de todo alcance concreto.
     Através dessas reflexões tem-se uma consideração suplementar, revelando o narcisismo que existe em tal tendência: deseja-se encontrar, e efetivamente se encontra os próprios desejos, afastando tudo o que perturba as expectativas. E se a opinião está inadequada declara-se que deve ser educada, ou que não está madura, ou que seu aviso, de repente, não deve ser considerado. O que tanto se exaltou encontra-se assim desconsiderado. Assim, o apelo à opinião revela-se pelo que é: seja uma renúncia ao político ou um álibi para não ousar medidas impopulares, em suma, um pretexto para demagogia, seja um alinhamento com grupos de pressão, laboratórios farmacêuticos ou equipes de pesquisa em ciências, para encobrir uma política subtraída à discussão sob o manto dos avanços científicos e terapêuticos, evidentemente acima de qualquer suspeita (VALADIER (b), 2003: 31).
       A desordem dos pensamentos e das práticas em matéria ética e moral vêm da pressão dos meios científicos no domínio da genética e da bioética que avança sob o manto de saúde pública, de luta contra doenças graves, de bem-estar social e de cuidado pelo progresso dos conhecimentos, e, mais globalmente, de domínio das condições sociais ou simplesmente de defesa dos interesses científicos nacionais.
     Na realidade a desordem de pensamentos é uma desordem de referências. A desordem em excesso dá impressão de que se está dominado por injunções contraditórias, entre as quais se hesita por ser difícil decidir ou então consagram-se orientações cada vez mais imperativas da nova ordem libertária. Esse excesso no nível da ética só é inquietante porque consagra um vazio ou uma fenda da instância moral que devia ser reguladora. Desse vazio provêm as dúvidas que ferem a referência cardeal ao valor da pessoa humana e ao sentido a atribuir à sua dignidade.
     Pode-se assim afirmar que a desordem das práticas e dos pensamentos encontra sua fonte em uma vertigem concernente ao sentido do homem e do lugar a conceder-lhe.

     A consequência das desordens do pensamento que engendram a desordem das práticas é a de um enfraquecimento do desejo e dos desejos. Esse enfraquecimento resulta no relativismo e no niilismo, que são também suas fontes e, tal é a inquietação mais forte, isso pode superar sentido do homem, constitutivo de nossas sociedades democráticas. Niilismo porque sob a exaltação do valor mais alto da pessoa em sua dignidade e muitas vezes a vontade de morte, o desprezo concreto pela pessoa que aparece, e o afastamento dos mais fracos de nossa comum humanidade. Por isso a vigilância intelectual impõe-se, tanto mais difícil quanto o conformismo libertário abafa o pensamento livre, impõe o político e eticamente correto e consegue banir os julgamentos divergentes. Nesse contexto de sufocação mole e insidiosa, as tradições de pensamentos, tanto filosóficas como religiosas, encontram dificilmente suas vias e suas vozes, quando é essencial que não abdiquem diante do conformismo.
    Nossas reflexões terão algum mérito se puderem aparecer como uma conexão dessa Palavra que não cessa de solicitar aos homens que não abdiquem de sua humanidade, seja qual for a dificuldade em definir o que têm de próprio e desejem antes o que eleva do que o que rebaixa: mostrar-se digno da humanidade em si, e digno do Deus que nela não cessa de arrastar para o alto, contra as sereias da vontade do nada. 


Ulisses amarrado para escapar das sereias



          

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