João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas
A condição humana
Do mesmo solo de “desesperada esperança e
de desesperado modo”, de “temerário otimismo e de temerário desespero”, de onde
brotou as origens do totalitarismo manam os problemas fundamentais enfrentados
em A condição humana por Hannah Arendt. Ambas as obras surgem da mesma
disposição para a compreensão, orientada não pela tentativa de negar os eventos
extremos – ao assimilá-los à trivialidade da linearidade histórica, encadeados
por analogias, leis universais, generalidades e lugares-comuns -, mas pela
corajosa determinação para enfrentar a realidade e resistir a ela, seja ela
qual for.
Em vista disso, possivelmente uma das
mais privilegiadas trilhas para a compreensão do significado e da razão de ser
de A condição humana.
As origens do totalitarismo, Arendt faz
uma referência peculiar ao conceito Kantiano de “mal radical”, que teria
surgido “em conexão com o sistema no qual todos os homens se tornaram
igualmente supérfluos”. A radicalidade desse mal repousaria não na corrupção do
fundamento moral de todas as máximas – com a recusa deliberada ou não da lei
moral como móbil para a ação em nome da satisfação dos interesses ou apetições,
como em Kant -, mas no mal absoluto contido na possibilidade de erradicação da
pluralidade da face da Terra, ao se “tornar os seres humanos, como seres
humanos, supérfluos (não os usando como meios para um fim, o que deixaria
intocada sua essência com humanos, atingindo apenas sua dignidade humana; mas,
mais propriamente, tornando-os supérfluos com seres humanos)”.
Aqui está em questão a dignidade humana,
pois, para ela, o respeito pela dignidade humana implica o reconhecimento de
cada indivíduo humano como edificador de mundos ou codificador de um mundo
comum. Arendt observa que as soluções totalitárias podem bem sobreviver à queda
dos regimes totalitários na forma de fortes tentações que surgirão sempre que
parecer impossível aliviar a miséria política, social ou econômicas de um modo
digno do homem.
Hannah Arendt publicou um texto sobre “
Ideologias e terror”, cuja articulação principal consiste em uma interpretação
de regime totalitário à luz da teoria das formas de governo concebida por Montesquieu.
Arendt não apenas acrescenta aos dois critérios de Montesquieu – a natureza
(aquilo que o faz ser o que é, sua estrutura particular) e o princípio de ação
de um regime (aquilo que o coloca em movimento por meio de ações) – um terceiro
elemento, uma experiência fundamental na qual repousa cada um deles, mas julga
ainda que o totalitarismo é uma nova forma de dominação que representa a
destruição do político, na medida em que a experiência fundamental subjaz a ela
é profundamente antipolítica. Com efeito, enquanto a monarquia repousa sobre a
honra e a república sobre a virtude, ambas respondendo à condição humana da
pluralidade, a tirania se assenta sobre a angústia do isolamento e do medo e o
totalitarismo se apoia na experiência fundamental do desamparo (loneliness). Enquanto na monarquia e na república o
princípio de ação se define pelo que se almeja e na tirania pelo que se teme,
no totalitarismo o terror visa a gerar indivíduos que não almejem a coisa
alguma não definida na ideologia e que no seu desamparo já não participem do
temor da própria aniquilação. Contudo, diz Arendt: O desamparo organizado é
consideravelmente mais perigoso que a impotência desorganizada de todos aqueles
que são governados pela vontade tirânica e arbitrária de um único homem. Seu
perigo é que ele ameaça devastar o mundo como o conhecemos – um mundo em toda
parte parece ter chegado a um fim – antes que um novo início surgindo desse fim
tenha tido tempo de se estabelecer.
Antes de concluir o ensaio. Arendt
reafirma sua convicção de que o totalitarismo, como potencialidade e perigo
sempre presente, tende doravante a nos fazer companhia, independentemente das
falências dos próprios regimes. Ela conclui, não obstante, afirmando o
seguinte.
“Mas permanece também a verdade de que
cada fim na história contém necessariamente um novo início; esse início é a
promessa, a única mensagem que o fim pode produzir. O início, antes de se
tornar um evento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente, é
idêntica à liberdade do homem. Initium ut esset homo creatus est – traduzindo,
(grifo meu), para que houvesse um início, o homem foi criado, disse Agostinho
(A cidade de Deus, livro 12, cap.20). Esse início é garantido por cada novo
nascimento; é, de fato, cada homem”.
Mas
Arendt não apenas retoma hipóteses. Além de examinar inauguralmente a relação
entre ação, compreensão, início. Perdão e promessa, ela reexamina o desamparo
como experiência fundamental do regime totalitário sob uma nova luz. Ao
comparar desamparo, isolamento e solitude, Arendt ressalta o quanto o
isolamento é o pré-requisito da tirania que destrói ou torna incapaz de agir,
destrói a esfera do comum, mas não destrói completamente o espaço entre os
homens. O isolamento é requisito para toda produção de coisas: retiro-me do
mundo dos homens a acrescento algo novo ao artifício humano. Estou absorvido no
mundo ao produzir uma coisa, permaneço em contato com tudo. Deixo apenas os
homens. Isso não é verdadeiro para o trabalho: não isolamento, necessária “privacidade”.
O isolamento torna-se desamparo sob as condições do trabalho.
Já no domínio político, Hannah Arendt
sustenta que: A confusão da ação política com a produção da história remota a
Marx. Ele esperava, depois de Hegel ter interpretado a história da humanidade,
ser capaz de mudar o mundo, ou seja, produzir o futuro da humanidade. O
marxismo pôde ser desdobrado em uma ideologia totalitária por causa de sua
perversão, ou incompreensão, da ação política como a produção da história.
Para Arendt, em nenhuma outra atividade
os seres humanos podem experimentar a bênção da vida como um todo, decorrente
da circunstância de que no trabalho o esforço a a gratificação se seguem tão
proximamente quanto a produção e o consumo, de modo que a felicidade é
concomitante ao processo. Mais que isso: A bênção ou a alegria do trabalho é o
modo humano de experimentar a pura satisfação de se estar vivo que temos em
comum com todas as criaturas vivas; e inclusive o único modo pelo qual também
os homens podem permanecer e voltear com contento no círculo prescrito pela
natureza, labutando e descansando, trabalho e consumindo, com a mesma
regularidade feliz e sem propósito com a qual o dia e a noite, a vida e a morte
sucedem um ao outro.
Com efeito, os homens sempre souberam que
aquele que age nunca sabe completamente o que está fazendo; que sempre vem a
ser culpado de consequência que jamais pretendeu ou previu; que, por mais
desastrosas e imprevistas que sejam as consequências do seu ato, jamais se
consuma inequivocamente em um único ato ou evento, e que seu verdadeiro
significado jamais se desvele para o ator, mas somente à mirada retrospectiva
do historiador, que não age.
Não é outra a razão de ela ter afirmado
que o liberalismo, a despeito do nome, contribuiu para banir a noção de
liberdade do âmbito político. Pois a política, de acordo com a mesma filosofia,
tem de se ocupar quase que exclusivamente com a manutenção da vida e a
salvaguarda de seus interesses. Ora, onde a vida está em questão, toda ação se
encontra, por definição, sob o domínio das necessidades, e o âmbito adequado
para cuidar das necessidades vitais é a gigantesca e ainda crescente esfera da
vida social e econômica, cuja administração tem obscurecido a âmbito político
desde os primórdios da época moderna.
Arendt, em todo caso, sempre recusou o
fatalismo, assim como qualquer outro modo de compreender o futuro como
predeterminado. Não apenas por isso, mas também por confiar na liberdade como
signo de dignidade humana, ela julgou que o nascimento de novos homens e
mulheres constituía uma réplica permanente às pretensões totalitárias, assim
como uma promessa de que a mentalidade do animal laborans, que mina as
possibilidades mais remotas da política e a tudo a pequena, não prevalece de
uma vez por todas. Mesmo em tempos sombrios ela pôde afirmar que com cada novo
nascimento um novo começo nasce no mundo, um novo mundo passa potencialmente a
existir.


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