terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Um menino nasceu – o mundo tornou a começar

                                                                    












João Guimarães Rosa. Grande Sertão:  Veredas



A condição humana

      Do mesmo solo de “desesperada esperança e de desesperado modo”, de “temerário otimismo e de temerário desespero”, de onde brotou as origens do totalitarismo manam os problemas fundamentais enfrentados em A condição humana por Hannah Arendt. Ambas as obras surgem da mesma disposição para a compreensão, orientada não pela tentativa de negar os eventos extremos – ao assimilá-los à trivialidade da linearidade histórica, encadeados por analogias, leis universais, generalidades e lugares-comuns -, mas pela corajosa determinação para enfrentar a realidade e resistir a ela, seja ela qual for.
      Em vista disso, possivelmente uma das mais privilegiadas trilhas para a compreensão do significado e da razão de ser de A condição humana.
      As origens do totalitarismo, Arendt faz uma referência peculiar ao conceito Kantiano de “mal radical”, que teria surgido “em conexão com o sistema no qual todos os homens se tornaram igualmente supérfluos”. A radicalidade desse mal repousaria não na corrupção do fundamento moral de todas as máximas – com a recusa deliberada ou não da lei moral como móbil para a ação em nome da satisfação dos interesses ou apetições, como em Kant -, mas no mal absoluto contido na possibilidade de erradicação da pluralidade da face da Terra, ao se “tornar os seres humanos, como seres humanos, supérfluos (não os usando como meios para um fim, o que deixaria intocada sua essência com humanos, atingindo apenas sua dignidade humana; mas, mais propriamente, tornando-os supérfluos com seres humanos)”.
     Aqui está em questão a dignidade humana, pois, para ela, o respeito pela dignidade humana implica o reconhecimento de cada indivíduo humano como edificador de mundos ou codificador de um mundo comum. Arendt observa que as soluções totalitárias podem bem sobreviver à queda dos regimes totalitários na forma de fortes tentações que surgirão sempre que parecer impossível aliviar a miséria política, social ou econômicas de um modo digno do homem.
      Hannah Arendt publicou um texto sobre “ Ideologias e terror”, cuja articulação principal consiste em uma interpretação de regime totalitário à luz da teoria das formas de governo concebida por Montesquieu. Arendt não apenas acrescenta aos dois critérios de Montesquieu – a natureza (aquilo que o faz ser o que é, sua estrutura particular) e o princípio de ação de um regime (aquilo que o coloca em movimento por meio de ações) – um terceiro elemento, uma experiência fundamental na qual repousa cada um deles, mas julga ainda que o totalitarismo é uma nova forma de dominação que representa a destruição do político, na medida em que a experiência fundamental subjaz a ela é profundamente antipolítica. Com efeito, enquanto a monarquia repousa sobre a honra e a república sobre a virtude, ambas respondendo à condição humana da pluralidade, a tirania se assenta sobre a angústia do isolamento e do medo e o totalitarismo se apoia na experiência fundamental do desamparo (loneliness).   Enquanto na monarquia e na república o princípio de ação se define pelo que se almeja e na tirania pelo que se teme, no totalitarismo o terror visa a gerar indivíduos que não almejem a coisa alguma não definida na ideologia e que no seu desamparo já não participem do temor da própria aniquilação. Contudo, diz Arendt: O desamparo organizado é consideravelmente mais perigoso que a impotência desorganizada de todos aqueles que são governados pela vontade tirânica e arbitrária de um único homem. Seu perigo é que ele ameaça devastar o mundo como o conhecemos – um mundo em toda parte parece ter chegado a um fim – antes que um novo início surgindo desse fim tenha tido tempo de se estabelecer.
      Antes de concluir o ensaio. Arendt reafirma sua convicção de que o totalitarismo, como potencialidade e perigo sempre presente, tende doravante a nos fazer companhia, independentemente das falências dos próprios regimes. Ela conclui, não obstante, afirmando o seguinte.
   “Mas permanece também a verdade de que cada fim na história contém necessariamente um novo início; esse início é a promessa, a única mensagem que o fim pode produzir. O início, antes de se tornar um evento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente, é idêntica à liberdade do homem. Initium ut esset homo creatus est – traduzindo, (grifo meu), para que houvesse um início, o homem foi criado, disse Agostinho (A cidade de Deus, livro 12, cap.20). Esse início é garantido por cada novo nascimento; é, de fato, cada homem”.
      Mas Arendt não apenas retoma hipóteses. Além de examinar inauguralmente a relação entre ação, compreensão, início. Perdão e promessa, ela reexamina o desamparo como experiência fundamental do regime totalitário sob uma nova luz. Ao comparar desamparo, isolamento e solitude, Arendt ressalta o quanto o isolamento é o pré-requisito da tirania que destrói ou torna incapaz de agir, destrói a esfera do comum, mas não destrói completamente o espaço entre os homens. O isolamento é requisito para toda produção de coisas: retiro-me do mundo dos homens a acrescento algo novo ao artifício humano. Estou absorvido no mundo ao produzir uma coisa, permaneço em contato com tudo. Deixo apenas os homens. Isso não é verdadeiro para o trabalho: não isolamento, necessária “privacidade”. O isolamento torna-se desamparo sob as condições do trabalho.
      Já no domínio político, Hannah Arendt sustenta que: A confusão da ação política com a produção da história remota a Marx. Ele esperava, depois de Hegel ter interpretado a história da humanidade, ser capaz de mudar o mundo, ou seja, produzir o futuro da humanidade. O marxismo pôde ser desdobrado em uma ideologia totalitária por causa de sua perversão, ou incompreensão, da ação política como a produção da história.
      Para Arendt, em nenhuma outra atividade os seres humanos podem experimentar a bênção da vida como um todo, decorrente da circunstância de que no trabalho o esforço a a gratificação se seguem tão proximamente quanto a produção e o consumo, de modo que a felicidade é concomitante ao processo. Mais que isso: A bênção ou a alegria do trabalho é o modo humano de experimentar a pura satisfação de se estar vivo que temos em comum com todas as criaturas vivas; e inclusive o único modo pelo qual também os homens podem permanecer e voltear com contento no círculo prescrito pela natureza, labutando e descansando, trabalho e consumindo, com a mesma regularidade feliz e sem propósito com a qual o dia e a noite, a vida e a morte sucedem um ao outro.
   Com efeito, os homens sempre souberam que aquele que age nunca sabe completamente o que está fazendo; que sempre vem a ser culpado de consequência que jamais pretendeu ou previu; que, por mais desastrosas e imprevistas que sejam as consequências do seu ato, jamais se consuma inequivocamente em um único ato ou evento, e que seu verdadeiro significado jamais se desvele para o ator, mas somente à mirada retrospectiva do historiador, que não age.
     Não é outra a razão de ela ter afirmado que o liberalismo, a despeito do nome, contribuiu para banir a noção de liberdade do âmbito político. Pois a política, de acordo com a mesma filosofia, tem de se ocupar quase que exclusivamente com a manutenção da vida e a salvaguarda de seus interesses. Ora, onde a vida está em questão, toda ação se encontra, por definição, sob o domínio das necessidades, e o âmbito adequado para cuidar das necessidades vitais é a gigantesca e ainda crescente esfera da vida social e econômica, cuja administração tem obscurecido a âmbito político desde os primórdios da época moderna.

      Arendt, em todo caso, sempre recusou o fatalismo, assim como qualquer outro modo de compreender o futuro como predeterminado. Não apenas por isso, mas também por confiar na liberdade como signo de dignidade humana, ela julgou que o nascimento de novos homens e mulheres constituía uma réplica permanente às pretensões totalitárias, assim como uma promessa de que a mentalidade do animal laborans, que mina as possibilidades mais remotas da política e a tudo a pequena, não prevalece de uma vez por todas. Mesmo em tempos sombrios ela pôde afirmar que com cada novo nascimento um novo começo nasce no mundo, um novo mundo passa potencialmente a existir.




















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