Será necessário mergulhar nas bases filosóficas da tecnociência contemporânea.
Nossas sociedades conhecem outros
princípios fundadores e fundamentais que permitem medir, criticar, até
denunciar certas orientações comandadas ou impostas pela nova ordem libertária.
A filosofia moral contemporânea não foi totalmente seduzida pelas sereias da
ideologia libertária. Ainda oferece recursos que permitem fundar juízos morais
capazes de orientar indivíduos, grupos e nações para soluções dignas do homem
em todos os grandes problemas coletivos que nos acometem (respeito ao ambiente,
problemas postos pela genética, relações internacionais marcadas pela mundialização,
desenvolvimento econômico equilibrado e benéfico para o maior número, etc.).
Nossas sociedades democráticas, por
trabalhadas que estejam pelo individualismo e pelo libertarismo, reconhecem
oficial e solenemente um certo número de princípios, e não somente
procedimentos, que organizam a vida política. Esses princípios estão
codificados em nossas constituições e em diversas cartas que garantem aos
cidadãos direitos fundamentais.
Foi com razão que Jacques Maritain, na
elaboração da Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948), falou de
“carta democrática” para caracterizar essa “carta moral”, moralidade política e
social, pacto fundamental de uma sociedade de homens livres (MARITAIN, 1990,
caps. IV e V). Maritain identificava esse pacto com esse credo humano comum, o
credo da liberdade, e via seu desenvolvimento historicamente situado na Carta
dos direitos do homem.
Em síntese, a pessoa que tomasse como
norma última de conduta certos imperativos libertários, como “seguir unicamente
seu desejo”, “procurar antes de tudo seu interesse pessoal”, ou o adolescente
que ordenasse sua vida segundo os conselhos difundidos pelos locutores das
rádios que ele costuma ouvir descobriria bem depressa coerções escolares
rigorosas que o obrigam, se quer ter um futuro próspero, não fazer o que lhe
apraz, mas a submeter-se a duras disciplinas. Então, o crente da ideologia
libertária dar-se-à conta, bem depressa, da mentira da ideologia e dos impasses
a que conduz: é verossímil que vá pagar um preço alto ou dividir em muitas
partes sua vida (laxismo nos costumes privados, rigor no trabalho e nas
relações públicas).
Mas, como já sugerimos, não é certo que
o princípio de realidade funcione tão bem no nível social e coletivo. Como
verificar nas crianças as conseqüências de sua adoção por casais homosexuais?
Como estar seguro de que um determinado remédio ou uma certa modificação
transgênica das plantas e dos animais terão efeitos nocivos sobre as gerações
futuras? Desse modo não é certo que as travas de segurança contra a ideologia
libertária, que se podem julgar presentes nos destinos individuais, se
encontrem também no nível coletivo.
Assim, pode-se ler sob a pena de um
respeitado jurista americano, Ronald Dworkin, que as novas técnicas de
manipulação genética, em particular a clonagem, acarretam falsas angústias, e
que convém resistir ao medo de “brincar de Deus”. Toda a sua argumentação
contribui para banalizar os perigos, explicando que a prática da clonagem já
existe nos animais e para nosso melhor bem, e que uma extensão ao homem seria
benéfica a muitos (pais sem filhos, cuidados terapêuticos garantidos aos
doentes atualmente incuráveis). E se o progresso científico abala nosso sistema
de valores, acrescenta, por que querer absolutamente e, portanto em vão,
mantê-lo de pé? Nosso sistema de valores já não foi sacudido, por exemplo,
pelas pesquisas sobre o átomo e no caso da prática da eutanásia? Ora, brincar
de Deus é brincar com fogo, “mas justamente é isso que nós, mortais, sempre
fizemos, desde Prometeu, esse santo protetor das experiências perigosas”.
Dworkin, com certeza, não pode ser
alinhado sob a bandeira da ideologia libertária. Porém, a convergência dessa
ideologia com a confiança prometéica, reivindicada como tal pelo jurista, nesse
ponto bastante representativo de posições importantes hoje em dia, pode
contribuir para abalar a “carta moral democrática” que está no fundamento de
nossas sociedades.
“Onde há o perigo cresce também aquilo
que salva”, disse Hölderlin. Todas as artes, os homens aprenderam de Prometeu.
Ésquilo (Prometeu acorrentado, v. 506 Cf. apud VON ZUBEN, 2006: 31).
A mitologia grega nos fornece uma
figura que serve de emblema para a técnica, para seu sentido e impacto sobre a
vida dos humanos e seus desafios no decorrer da história. A figura da
modernidade que pode igualar-se à de Prometeu é o Fausto de Goethe, no sentido
de uma transgressão de Prometeu a uma ordem preexistente, a autoridade de Zeus.
Prometeu, herói civilizador por
execelência, um demiurgo que modela o homem com suas mãos, protetor da
humanidade contra a ira de Zeus, rouba o fogo do céu e o entrega aos humanos.
Com o fogo surgiu a cultura, permitindo aos humanos compensar as insuficiências
da natureza. Por essa razão, alguns relatos creditam a Prometeu a criação do
primeiro homem, do barro e da água, e, como protetor da humanidade, a
transmissão de conhecimentos que geraram e instituíram a civilização huamana, tais
como construir habitações, forjar metais e utilizar os instrumentos assim
fabricados na agricultura, domesticar animais.
Desse modo, Prometeu rebela-se
abertamente contra o mundo dos Imortais ao qual pertencia, toma partido da
terra e dos humanos que nela viviam sob o olhar invejoso e desprezador dos
deuses. “A sorte da humanidade foi lançada na luta que opôs Prometeu a Zeus, o
saber ao poder, o racional ao irracional” (JACOB, 1998: 109). Prometeu é o
único que ousou desafiar o chefe do Panteão revelando as fraquezas e
precariedades dos deuses. Sabemos a conseqüência do seu ato. Para castigá-lo,
Zeus ordenou que Hefáistos (Vulcão dos latinos), deus do fogo e do metal, o
acorrentasse em um rochedo no Cáucaso.
No diálogo Protágoras, Platão assim apresenta o feito de Prometeu em favor dos
humanos, de certo modo, desprezados por Epimeteu a quem coube a tarefa de
distribuir as qualidades a cada ser em particular. A Prometeu
coube a tarefa de as controlar. Escreve Platão:
Prometeu atormentado pelo
embaraço em saber qual meio encontraria para salvar o homem, rouba de Hefáistos
e de Atenas, o gênio criador das artes, roubando o fogo, pois sem ele, não
seria possível para ninguém adquirir o gênio das artes ou utilizá-lo; assim ele
entregou aos homens seu presente. Eis, portanto, como os homens adquiriram a
inteligência que se aplica aos bens da vida (Platão, Protágoras, 321, d Cf.
apud VON ZUBEN, 2006: 32-33).
Prometeu é o emblema da técnica como
astúcia mostrando traços da ambivalência com que estão, atualmente, assinaladas
as tecnociências, em outras palavras, as tecnociências comportam a mistura de
conquistas positivas para a humanidade, e, ao mesmo tempo, efeitos funestos e
destrutivos.
A técnica, como presente de Prometeu,
reflete, de fato, desde a aurora da civilização humana, a ambivalência como
traço característico: o bem misturado com o mal. Ao mesmo tempo em que ajuda os
humanos, leva consigo a cilada da destruição, da dor, do sofrimento e da morte.
Podemos vislumbrar, em nosso
imaginário, a época, já próxima, em que o homem e a natureza serão
transformados de modo radical com toda a potência e possibilidade da
tecnociência e seu universo de manipulação, desde a manipulação genética com
células-tronco embrionárias, a manipulação das experiências interiores, da afetividade,
até a manipulação da atividade simbólica. Estamos em plena simbiose crescente
entre o homem e elementos cibernéticos dos futuríveis do projeto
tecnocientífico, era em que Alvin Tofler se pergunta: qual será o sentido do
conceito humanidade quando o homem for em parte protoplasma e em parte
transistor? Engana-se que acredita que o processo da hominização tenha findado.
Ao contrário, acelera-se bruscamente (VON ZUBEN, 2006: 188).
Tais questões são vastas, não é
possível desenvolvê-las nesse momento.
Impõe-se cada vez mais a consciência da
relevância e da necessidade de apoio ao desenvolvimento das investigações
científicas, sobretudo na área das biociências, da genética, da biomedicina.
Segundo Paula Sibilia, para compreendermos
os tipos de corpos e subjetividades que estão sendo construídos com ajuda da
teleinformática e das biotecnologias, será necessário mergulhar nas bases
filosóficas da tecnociência contemporânea.
Com base nos estudos do sociólogo
português Hermínio Martins, Paula
Sibilia sustenta que se trata de uma tecnociência de vocação fáustica, cuja meta consiste em
ultrapassar a condição humana.
Há vários mitos que dão conta, na
tradição ocidental, como vimos da mistura de fascínio e terror provocada pelas
potencialidades da tecnologia e do conhecimento. Entre os gregos se destaca o
grande clássico Prometeu, o titã que
forneceu aos homens o fogo – e, através dele, a tecnologia – obtendo o mais
severo castigo dos deuses. Outro personagem mítico muito relevante é Fausto, de origem alemã, que segundo a
análise de Marshall Berman, “a tragédia ou a comédia se produz quando Fausto
‘perde o controle’ das energias de sua mente, que passam a adquirir vida
própria, dinâmica e altamente explosiva”.
Fausto, animado por uma vontade de
crescimento infinito e pelo desejo de superar as suas próprias possibilidades,
compactua com o diabo e assume o risco de desatar, com isso, as potências
infernais.
Hermínio Martins se vale dessas duas
figuras míticas da cultura ocidental, Fausto e Prometeu, para analisar as bases
da tecnociência moderna e contemporânea. A tradição prometéica e a tradição
fáustica constituem duas linhas de pensamentos sobre a técnica que podem ser detectadas nos textos dos
epistemólogos dos séculos XIX e XX.
Martins conclui que é na tradição fáustica que se inscreve a filosofia
da tecnociência contemporânea.
Em primeiro lugar, se a tradição
prometéica pretende dominar tecnicamente a natureza, o faz visando “o bem
humano”, a emancipação da espécie e, fundamentalmente, das “classes oprimidas”.
Apostando no papel libertador do conhecimento científico, este tipo de saber
almeja melhorar as condições de vida dos homens através da tecnologia, graças à
dominação racional da natureza. Confiantes no progresso, os defensores do
prometeísmo colocam a ênfase na ciência
como “conhecimento puro” e têm uma visão meramente instrumental da técnica. Ao menos teoricamente, o
desenvolvimento gradativo desse tipo de saber levaria à construção de uma
sociedade racional, assentada em uma sólida base científico-industrial capaz de
acabar com a miséria humana.
Os prometeístas consideram que há
limites com relação ao que pode ser conhecido, feito e criado. Martins detecta
em seus discursos um espaço reservado aos “mistérios” da origem da vida e da
evolução biológica, por exemplo, questões que estariam fora do alcance da
racionalidade científica.
Ao que parece, então, tais cientistas
entenderam a lição do mítico titã: certos assuntos pertencem exclusivamente aos
domínios divinos.
Os conhecimentos e as técnicas dos
homens não são todo-poderosos; seus “dedos-profanos” não podem perturbar todos
os âmbitos, pois há limites que devem ser respeitados. Como se depreende
logicamente de seus postulados, o progresso dos saberes e das ferramentas
prometéicas redunda em um certo “aperfeiçoamento” do corpo, porém este será
sempre naturalista e não-transcendentalista; ou seja não pretenderá ir além dos
limites impostos pela “natureza humana”. Aí a tecnociência de inspiração
prometéica se detém, sem pretender ultrapassar o umbral da vida – os “segredos
tremendos da estrutura humana” profanados pelo Dr. Frankenstein.
Na atual sociedade tecnológica, enfim,
o antigo prometeísmo está em decadência. É aqui que entra em cena a outra
vertente filosófica da tecnociência: a tradição fáustica, que se destacam,
nessa linhagem, os representantes alemães Martin Heidegger e Oswald Spengler.
A tradição fáustica esforça-se por
desmascarar os argumentos prometéicos, revelando o caráter essencialmente
tecnológico do conhecimento científico: haveria uma dependência, tanto
conceitual quanto ontológica, da ciência
com relação à técnica. Conforme a
perspectiva fáustica, então, os procedimentos científicos não visariam à
verdade ou ao conhecimento da natureza íntima das coisas, mas somente à
compreensão dos fenômenos para exercer a previsão e o controle.
Considerando ser um saber de tipo
fáustico, a tecnociência contemporânea almeja ultrapassar todas as limitações
biológicas ligadas à materialidade do corpo humano, rudes obstáculos orgânicos
que restringem as potencialidades e as ambições dos homens. Por exemplo, as
pesquisas em biotecnologia, não se conformam com a realização de meras
melhorias cosméticas ou com o aditamento de próteses para os organismos
danificados. Não pretendem apenas estender ou ampliar as capacidades do corpo
humano; elas apontam para bem mais longe: possuem uma “vocação ontológica”, uma
aspiração transcendentalista que enxerga no instrumental tecnocientífico a
possibilidade de criar vida.
Portanto, a sociedade atual assiste ao
surgimento de um tipo de saber radicalmente novo, com um anseio inédito de
totalidade. Fáustico, ele pretende exercer um controle total sobre a vida,
superando as suas limitações biológicas; inclusive, a mais fatal de todas elas:
a mortalidade. Nos discursos da tecnociência contemporânea, o “fim da morte”
parece extrapolar todo substrato metafórico para apresentar-se como um objetivo
explícito: as tecnologias da imortalidade estão na mira de várias pesquisas
atuais, da inteligência artificial à engenharia genética, passando pela
criogenia e por toda a farmacopéia antioxidante.
Em decorrência das conquistas
tecnocientíficas das últimas décadas, os limites médicos e jurídicos entre a
vida e a morte estão sendo revistos: “as condições antes consideradas como
morte passaram a ser reversíveis, exigindo a elaboração de novas leis,
definições e práticas”, afirma o autor James Hughes. Em conseqüência disso,
atualmente os especialistas da área estão discutindo as alterações necessárias
na definição técnica de morte, na qual se baseiam as declarações de óbito que
permitem tomar uma série de decisões importantes: interromper o suporte
artificial à vida, autorizar a extração de órgãos para transplantes, efetivar
testamentos e enterrar os corpos.
Atualmente as biotecnologias, na
conquista da imortalidade, recorrem ao instrumental informático, numa
hibridização das duas vertentes mais representativas da tecnociência atual. Um
exemplo desta poderosa aliança é o Projeto Genoma Humano, financiado por
agências governamentais dos EUA e cobiçado também por capitais privados; seu
objetivo é decifrar o mapa genético da espécie humana, com a intenção de detectar
a origem das doenças genéticas e aplicar terapêuticas preventivas. Outro
exemplo dessa associação bioinformática na conquista da imortalidade é uma
disciplina da computação: a inteligência artificial. Os pesquisadores dessa
área aspiram a remover a mente do cérebro humano e transferi-la para um
computador (SIBILIA, 2002: 41-56).
Paula Sibilia aponta para os perigos da
concepção fáustica do fascínio humano de intervir na ordem da natureza.
É assim que Von Zuben tem a convicção
de que a tarefa da filosofia é assegurar amplo debate sobre a pertinência e a
relevância de pesquisas em certas áreas, delicadas sem dúvida, mas promissoras
(refere-se às pesquisas sobre células-tronco embrionárias). Por outro lado, Von
Zuben chega a pensar como falta de ética a decisão de se proibir radicalmente
determinadas investigações tomando-se por base unicamente argumentos de ordem
metafísico-teológica. O mito de Prometeu nos ensina que, de início, a inovação
foi entendida como transgressão de uma ordem preexistente, a autoridade de
Zeus, chefe do Olimpo.
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