terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Banalização dos pensamentos da decisão política.

 Será necessário mergulhar nas bases filosóficas da tecnociência contemporânea.


        Nossas sociedades conhecem outros princípios fundadores e fundamentais que permitem medir, criticar, até denunciar certas orientações comandadas ou impostas pela nova ordem libertária. A filosofia moral contemporânea não foi totalmente seduzida pelas sereias da ideologia libertária. Ainda oferece recursos que permitem fundar juízos morais capazes de orientar indivíduos, grupos e nações para soluções dignas do homem em todos os grandes problemas coletivos que nos acometem (respeito ao ambiente, problemas postos pela genética, relações internacionais marcadas pela mundialização, desenvolvimento econômico equilibrado e benéfico para o maior número, etc.).
        Nossas sociedades democráticas, por trabalhadas que estejam pelo individualismo e pelo libertarismo, reconhecem oficial e solenemente um certo número de princípios, e não somente procedimentos, que organizam a vida política. Esses princípios estão codificados em nossas constituições e em diversas cartas que garantem aos cidadãos direitos fundamentais.
        Foi com razão que Jacques Maritain, na elaboração da Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948), falou de “carta democrática” para caracterizar essa “carta moral”, moralidade política e social, pacto fundamental de uma sociedade de homens livres (MARITAIN, 1990, caps. IV e V). Maritain identificava esse pacto com esse credo humano comum, o credo da liberdade, e via seu desenvolvimento historicamente situado na Carta dos direitos do homem.
        Em síntese, a pessoa que tomasse como norma última de conduta certos imperativos libertários, como “seguir unicamente seu desejo”, “procurar antes de tudo seu interesse pessoal”, ou o adolescente que ordenasse sua vida segundo os conselhos difundidos pelos locutores das rádios que ele costuma ouvir descobriria bem depressa coerções escolares rigorosas que o obrigam, se quer ter um futuro próspero, não fazer o que lhe apraz, mas a submeter-se a duras disciplinas. Então, o crente da ideologia libertária dar-se-à conta, bem depressa, da mentira da ideologia e dos impasses a que conduz: é verossímil que vá pagar um preço alto ou dividir em muitas partes sua vida (laxismo nos costumes privados, rigor no trabalho e nas relações públicas).
        Mas, como já sugerimos, não é certo que o princípio de realidade funcione tão bem no nível social e coletivo. Como verificar nas crianças as conseqüências de sua adoção por casais homosexuais? Como estar seguro de que um determinado remédio ou uma certa modificação transgênica das plantas e dos animais terão efeitos nocivos sobre as gerações futuras? Desse modo não é certo que as travas de segurança contra a ideologia libertária, que se podem julgar presentes nos destinos individuais, se encontrem também no nível coletivo.
        Assim, pode-se ler sob a pena de um respeitado jurista americano, Ronald Dworkin, que as novas técnicas de manipulação genética, em particular a clonagem, acarretam falsas angústias, e que convém resistir ao medo de “brincar de Deus”. Toda a sua argumentação contribui para banalizar os perigos, explicando que a prática da clonagem já existe nos animais e para nosso melhor bem, e que uma extensão ao homem seria benéfica a muitos (pais sem filhos, cuidados terapêuticos garantidos aos doentes atualmente incuráveis). E se o progresso científico abala nosso sistema de valores, acrescenta, por que querer absolutamente e, portanto em vão, mantê-lo de pé? Nosso sistema de valores já não foi sacudido, por exemplo, pelas pesquisas sobre o átomo e no caso da prática da eutanásia? Ora, brincar de Deus é brincar com fogo, “mas justamente é isso que nós, mortais, sempre fizemos, desde Prometeu, esse santo protetor das experiências perigosas”.
        Dworkin, com certeza, não pode ser alinhado sob a bandeira da ideologia libertária. Porém, a convergência dessa ideologia com a confiança prometéica, reivindicada como tal pelo jurista, nesse ponto bastante representativo de posições importantes hoje em dia, pode contribuir para abalar a “carta moral democrática” que está no fundamento de nossas sociedades.
        “Onde há o perigo cresce também aquilo que salva”, disse Hölderlin. Todas as artes, os homens aprenderam de Prometeu. Ésquilo (Prometeu acorrentado, v. 506 Cf. apud VON ZUBEN, 2006: 31).
        A mitologia grega nos fornece uma figura que serve de emblema para a técnica, para seu sentido e impacto sobre a vida dos humanos e seus desafios no decorrer da história. A figura da modernidade que pode igualar-se à de Prometeu é o Fausto de Goethe, no sentido de uma transgressão de Prometeu a uma ordem preexistente, a autoridade de Zeus.
        Prometeu, herói civilizador por execelência, um demiurgo que modela o homem com suas mãos, protetor da humanidade contra a ira de Zeus, rouba o fogo do céu e o entrega aos humanos. Com o fogo surgiu a cultura, permitindo aos humanos compensar as insuficiências da natureza. Por essa razão, alguns relatos creditam a Prometeu a criação do primeiro homem, do barro e da água, e, como protetor da humanidade, a transmissão de conhecimentos que geraram e instituíram a civilização huamana, tais como construir habitações, forjar metais e utilizar os instrumentos assim fabricados na agricultura, domesticar animais.
        Desse modo, Prometeu rebela-se abertamente contra o mundo dos Imortais ao qual pertencia, toma partido da terra e dos humanos que nela viviam sob o olhar invejoso e desprezador dos deuses. “A sorte da humanidade foi lançada na luta que opôs Prometeu a Zeus, o saber ao poder, o racional ao irracional” (JACOB, 1998: 109). Prometeu é o único que ousou desafiar o chefe do Panteão revelando as fraquezas e precariedades dos deuses. Sabemos a conseqüência do seu ato. Para castigá-lo, Zeus ordenou que Hefáistos (Vulcão dos latinos), deus do fogo e do metal, o acorrentasse em um rochedo no Cáucaso.
        No diálogo Protágoras, Platão assim apresenta o feito de Prometeu em favor dos humanos, de certo modo, desprezados por Epimeteu a quem coube a tarefa de distribuir as qualidades a cada ser em particular. A Prometeu coube a tarefa de as controlar. Escreve Platão:

Prometeu atormentado pelo embaraço em saber qual meio encontraria para salvar o homem, rouba de Hefáistos e de Atenas, o gênio criador das artes, roubando o fogo, pois sem ele, não seria possível para ninguém adquirir o gênio das artes ou utilizá-lo; assim ele entregou aos homens seu presente. Eis, portanto, como os homens adquiriram a inteligência que se aplica aos bens da vida (Platão, Protágoras, 321, d Cf. apud VON ZUBEN, 2006: 32-33). 

        Prometeu é o emblema da técnica como astúcia mostrando traços da ambivalência com que estão, atualmente, assinaladas as tecnociências, em outras palavras, as tecnociências comportam a mistura de conquistas positivas para a humanidade, e, ao mesmo tempo, efeitos funestos e destrutivos.
        A técnica, como presente de Prometeu, reflete, de fato, desde a aurora da civilização humana, a ambivalência como traço característico: o bem misturado com o mal. Ao mesmo tempo em que ajuda os humanos, leva consigo a cilada da destruição, da dor, do sofrimento e da morte.

        Podemos vislumbrar, em nosso imaginário, a época, já próxima, em que o homem e a natureza serão transformados de modo radical com toda a potência e possibilidade da tecnociência e seu universo de manipulação, desde a manipulação genética com células-tronco embrionárias, a manipulação das experiências interiores, da afetividade, até a manipulação da atividade simbólica. Estamos em plena simbiose crescente entre o homem e elementos cibernéticos dos futuríveis do projeto tecnocientífico, era em que Alvin Tofler se pergunta: qual será o sentido do conceito humanidade quando o homem for em parte protoplasma e em parte transistor? Engana-se que acredita que o processo da hominização tenha findado. Ao contrário, acelera-se bruscamente (VON ZUBEN, 2006: 188).
         Tais questões são vastas, não é possível desenvolvê-las nesse momento.
     Impõe-se cada vez mais a consciência da relevância e da necessidade de apoio ao desenvolvimento das investigações científicas, sobretudo na área das biociências, da genética, da biomedicina.
        Segundo Paula Sibilia, para compreendermos os tipos de corpos e subjetividades que estão sendo construídos com ajuda da teleinformática e das biotecnologias, será necessário mergulhar nas bases filosóficas da tecnociência contemporânea.
        Com base nos estudos do sociólogo português Hermínio Martins, Paula Sibilia sustenta que se trata de uma tecnociência de vocação fáustica, cuja meta consiste em ultrapassar a condição humana.
        Há vários mitos que dão conta, na tradição ocidental, como vimos da mistura de fascínio e terror provocada pelas potencialidades da tecnologia e do conhecimento. Entre os gregos se destaca o grande clássico Prometeu, o titã que forneceu aos homens o fogo – e, através dele, a tecnologia – obtendo o mais severo castigo dos deuses. Outro personagem mítico muito relevante é Fausto, de origem alemã, que segundo a análise de Marshall Berman, “a tragédia ou a comédia se produz quando Fausto ‘perde o controle’ das energias de sua mente, que passam a adquirir vida própria, dinâmica e altamente explosiva”.
        Fausto, animado por uma vontade de crescimento infinito e pelo desejo de superar as suas próprias possibilidades, compactua com o diabo e assume o risco de desatar, com isso, as potências infernais.
        Hermínio Martins se vale dessas duas figuras míticas da cultura ocidental, Fausto e Prometeu, para analisar as bases da tecnociência moderna e contemporânea. A tradição prometéica e a tradição fáustica constituem duas linhas de pensamentos sobre a técnica  que podem ser detectadas nos textos dos epistemólogos dos séculos XIX e XX.  Martins conclui que é na tradição fáustica que se inscreve a filosofia da tecnociência contemporânea.
        Em primeiro lugar, se a tradição prometéica pretende dominar tecnicamente a natureza, o faz visando “o bem humano”, a emancipação da espécie e, fundamentalmente, das “classes oprimidas”. Apostando no papel libertador do conhecimento científico, este tipo de saber almeja melhorar as condições de vida dos homens através da tecnologia, graças à dominação racional da natureza. Confiantes no progresso, os defensores do prometeísmo colocam a ênfase na ciência como “conhecimento puro” e têm uma visão meramente instrumental da técnica. Ao menos teoricamente, o desenvolvimento gradativo desse tipo de saber levaria à construção de uma sociedade racional, assentada em uma sólida base científico-industrial capaz de acabar com a miséria humana.
        Os prometeístas consideram que há limites com relação ao que pode ser conhecido, feito e criado. Martins detecta em seus discursos um espaço reservado aos “mistérios” da origem da vida e da evolução biológica, por exemplo, questões que estariam fora do alcance da racionalidade científica.
        Ao que parece, então, tais cientistas entenderam a lição do mítico titã: certos assuntos pertencem exclusivamente aos domínios divinos.
        Os conhecimentos e as técnicas dos homens não são todo-poderosos; seus “dedos-profanos” não podem perturbar todos os âmbitos, pois há limites que devem ser respeitados. Como se depreende logicamente de seus postulados, o progresso dos saberes e das ferramentas prometéicas redunda em um certo “aperfeiçoamento” do corpo, porém este será sempre naturalista e não-transcendentalista; ou seja não pretenderá ir além dos limites impostos pela “natureza humana”. Aí a tecnociência de inspiração prometéica se detém, sem pretender ultrapassar o umbral da vida – os “segredos tremendos da estrutura humana” profanados pelo Dr. Frankenstein.
        Na atual sociedade tecnológica, enfim, o antigo prometeísmo está em decadência. É aqui que entra em cena a outra vertente filosófica da tecnociência: a tradição fáustica, que se destacam, nessa linhagem, os representantes alemães Martin Heidegger e Oswald Spengler.
        A tradição fáustica esforça-se por desmascarar os argumentos prometéicos, revelando o caráter essencialmente tecnológico do conhecimento científico: haveria uma dependência, tanto conceitual quanto ontológica, da ciência com relação à técnica. Conforme a perspectiva fáustica, então, os procedimentos científicos não visariam à verdade ou ao conhecimento da natureza íntima das coisas, mas somente à compreensão dos fenômenos para exercer a previsão e o controle.
        Considerando ser um saber de tipo fáustico, a tecnociência contemporânea almeja ultrapassar todas as limitações biológicas ligadas à materialidade do corpo humano, rudes obstáculos orgânicos que restringem as potencialidades e as ambições dos homens. Por exemplo, as pesquisas em biotecnologia, não se conformam com a realização de meras melhorias cosméticas ou com o aditamento de próteses para os organismos danificados. Não pretendem apenas estender ou ampliar as capacidades do corpo humano; elas apontam para bem mais longe: possuem uma “vocação ontológica”, uma aspiração transcendentalista que enxerga no instrumental tecnocientífico a possibilidade de criar vida.
        Portanto, a sociedade atual assiste ao surgimento de um tipo de saber radicalmente novo, com um anseio inédito de totalidade. Fáustico, ele pretende exercer um controle total sobre a vida, superando as suas limitações biológicas; inclusive, a mais fatal de todas elas: a mortalidade. Nos discursos da tecnociência contemporânea, o “fim da morte” parece extrapolar todo substrato metafórico para apresentar-se como um objetivo explícito: as tecnologias da imortalidade estão na mira de várias pesquisas atuais, da inteligência artificial à engenharia genética, passando pela criogenia e por toda a farmacopéia antioxidante.
        Em decorrência das conquistas tecnocientíficas das últimas décadas, os limites médicos e jurídicos entre a vida e a morte estão sendo revistos: “as condições antes consideradas como morte passaram a ser reversíveis, exigindo a elaboração de novas leis, definições e práticas”, afirma o autor James Hughes. Em conseqüência disso, atualmente os especialistas da área estão discutindo as alterações necessárias na definição técnica de morte, na qual se baseiam as declarações de óbito que permitem tomar uma série de decisões importantes: interromper o suporte artificial à vida, autorizar a extração de órgãos para transplantes, efetivar testamentos e enterrar os corpos.
     Atualmente as biotecnologias, na conquista da imortalidade, recorrem ao instrumental informático, numa hibridização das duas vertentes mais representativas da tecnociência atual. Um exemplo desta poderosa aliança é o Projeto Genoma Humano, financiado por agências governamentais dos EUA e cobiçado também por capitais privados; seu objetivo é decifrar o mapa genético da espécie humana, com a intenção de detectar a origem das doenças genéticas e aplicar terapêuticas preventivas. Outro exemplo dessa associação bioinformática na conquista da imortalidade é uma disciplina da computação: a inteligência artificial. Os pesquisadores dessa área aspiram a remover a mente do cérebro humano e transferi-la para um computador (SIBILIA, 2002: 41-56).
       Paula Sibilia aponta para os perigos da concepção fáustica do fascínio humano de intervir na ordem da natureza.


        É assim que Von Zuben tem a convicção de que a tarefa da filosofia é assegurar amplo debate sobre a pertinência e a relevância de pesquisas em certas áreas, delicadas sem dúvida, mas promissoras (refere-se às pesquisas sobre células-tronco embrionárias). Por outro lado, Von Zuben chega a pensar como falta de ética a decisão de se proibir radicalmente determinadas investigações tomando-se por base unicamente argumentos de ordem metafísico-teológica. O mito de Prometeu nos ensina que, de início, a inovação foi entendida como transgressão de uma ordem preexistente, a autoridade de Zeus, chefe do Olimpo. 

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