quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Da ética principialista para a bioética


     
A bioética surgiu, sobretudo a partir das questões que envolveram a relação médico-paciente. Era necessário produzir princípios que viessem a nortear a elaboração de juízos e tendências para regular a atuação médica e oferecesse ao paciente condições para decidir sobre procedimentos médicos e a aplicação de tratamento ou não. Foram então exigidos três princípios para fundamentar a bioética: autonomia (autodeterminação), beneficência e não-maleficência (o maior bem do paciente) e de justiça (a distribuição justa de benefícios e obrigações na sociedade.
      O princípio da autonomia obteve grande destaque nos Estados Unidos (EUA), uma vez que procurou codificar o relacionamento entre o usuário do serviço de saúde e o profissional médico. Resistindo ao paternalismo comum dos médicos, afirma-se a liberdade de escolha do paciente e a obrigatoriedade do consenso livre e informado, quando tenha condição para tal. Na falta dessas condições, cabe ao círculo familiar decidir. Então, surge a ideia do consentimento informado e o médico deixa de tomar decisões, mas ajuda o doente a, devidamente informado, a fazê-las (MOSER, 2004).
      Para Segre, trata-se de uma conquista recente, que busca garantir o respeito à individualidade e o reconhecimento do outro pensar e sentir à sua própria maneira. Fundamentada no iluminismo europeu, sobretudo a partir de Descartes, Montesquieu, Rousseau e depois Kant, muito embora Kant seja muito mais um deontologista do que um autonomista, recebeu depois a contribuição da interiorização e autoconhecimento da psicanálise de Freud.
      Princípio da beneficência, também associado à prática médica, visa demarcar a obrigatoriedade de buscar a melhora terapêutica do paciente. Se de um lado o médico precisa prestar atenção ao direito de autonomia do paciente, deverá igualmente preocupar-se como os procedimentos que irá tomar para não causar mais riscos ou efeitos colaterais ao doente. Este princípio ofereceu forte ênfase para a noção de responsabilidade do médico, quando suas práticas passam a causar mais danos ao paciente ou, quando equivocadas, deixam seqüelas ou causam o óbito.
      Em seu significado filosófico moral, beneficência significa fazer o bem. São os moralistas britânicos do século XVIII e XIX que se debruçaram sobre o conceito de benevolência, forma genérica da beneficência. Para estes pensadores, dentre os quais David Hume e Jeremy Bentham, há no homem, de forma prioritária, um princípio natural de procura e realização do bem dos outros. Esta noção é uma contraposição crítica à ideia de Thomas Hobbes, para quem a natureza humana é dominada por forças do egoísmo, da autoconservação e competição.
      Princípio da justiça visa estabelecer uma repartição equânime dos benefícios e dos riscos, a fim de evitar discriminações e injustiça nas políticas e intervenções sanitárias. Sua aplicação pode também se dirigir às questões médicas, como no caso de socorro a um número de pacientes superior ao de unidades ou equipamentos de tratamento. Trata-se de critérios sociais que orientam quem vai viver ou morrer. É muito utilizado na condução e aplicação de políticas de saúde pública, sobretudo quando se trata de estender os serviços de saúde à população de baixa renda.
      Este princípio adquiriu novo vigor em função da crise econômica dos institutos de previdência social, em função do envelhecimento da população nos países desenvolvidos. Com dificuldades de atender às necessidades de todos, os governos optaram em oferecer atendimento básico s todas as pessoas, reservando as necessidades mais específicas para cobertura de empresas particulares de seguro.
      A aplicação destes princípios é geralmente relativa, com a tendência a estabelecer a prioridade a um deles, principalmente em se tratando da complexidade dos dilemas que exigem sua aplicação. É bastante recorrente a literatura que utiliza casos de conflitos éticos com vistas a analisar as soluções ou encaminhamentos tomados. Dentre estes casos, percebem-se antinomias e efeitos não-intencionais.
      Antinomias significa conflito de valores, se determina quando dois ou mais princípios ou valores, que se apoiam em premissas de igual validade ou que são considerados de igual importância se contradizem reciprocamente.
      Da mesma forma, são percebidos também mau uso dos princípios. É o que se pose constatar na matéria, “A piada do consentimento informado”, publicada pela versão on line do jornal Le Monde Diplomatique. O jornal relata que os Estados Unidos relaxaram, em favor da indústria de medicamentos, as normas sobre testes de novas drogas realizados no exterior, sobretudo com voluntários carentes de países pobres, como exemplo temos: Índia, África e Brasil. Neste caso, estaria ocorrendo um uso negligente do princípio da autonomia, que prevê o consentimento informado do paciente ou do voluntário que se submete a tratamentos ou pesquisas experimentais.
      Os responsáveis norte-americanos da agência de medicamentos e alimentação, mostram-se, entretanto, confiantes na capacidade de auto-proteção dessas pessoas, dando ou retirando seu consentimento. Para Robert Temple, diretor médico da FDA, questionar a capacidade dos pacientes carentes de dar seu consentimento seria uma atitude paternalista. Não se deve tratá-los como se fossem incapazes de atingir seus próprios objetivos, explicou. Ser analfabeto e pobre não é certamente um obstáculo intransponível: os conceitos científicos utilizados no centro de pesquisa são provavelmente desconhecidos para essas pessoas, mas não incompreensíveis.
      Para Gracia, do lado das críticas, persistem as manifestações contrárias à bioética que a veem apenas como uma apropriação pragmática e utilitaristas, características de uma cultura anglo-saxônica. Outros consideram a necessidade de torná-la mais laica, fazendo-a sair do campo confessional de sua origem, em função da pluralidade cultural da sociedade moderna que abrange filosofias e éticas divergentes, além de muitas concepções religiosas contrastantes (ENGELHADT, 1996). É o caso, por exemplo, que ocorre em muitos congressos internacionais de bioética, onde persistem dificuldades de cosmovisões contrastantes a respeito de temas como aborto, eutanásia, status de pessoa do embrião, já que teólogos e filósofos do mundo oriental não trabalham com a mesma perspectiva ocidental. Tais dificuldades chegaram a impedir a celebração de acordos e documentos norteadores em âmbito global.
     O fato é que a bioética, se trabalha noções e almeja tornar-se universal, precisa articular uma perspectiva intercultural e inter-religiosa. O entrave é que o confessionalismo ainda se mantém forte, como também e hegemonia ocidental que não esconde seu desconforto com o progresso científico de pesquisadores de alguns países orientais, ainda livres de condicionamentos éticos. Exemplo é a prática do Magistério católico e de sua recusa de diálogo no terreno da moral, uma vez que a Igreja tem dificuldade em considerar os valores universais comuns do ponto de vista de uma busca.

















O Magistério Ordinário da Igreja Católica

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