terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Bioética e Biossegurança:

 As tecnociências e transcendência de limites.

       
Segundo a Teogonia grega, ao presentear os humanos com o fogo, metáfora da técnica, Prometeu foi castigado pela indelicadeza de sua astúcia. No entanto, essa astúcia inaugurou a fantástica aventura dos humanos ao mundo, acompanhando a astúcia de Prometeu ao enfrentar, com sua determinação e arbítrio, o domínio dos deuses. Essa aventura veio acompanhada de infortúnio, pois foram punidos com os males espalhados logo que Pandora, movida pela curiosidade, abriu a caixa onde estavam depositados todos os males. A técnica, tal como nos relata Platão, no seu diálogo Protágoras, embora seja descrita como instrumento de poder, por si só é desprovida de qualquer sentido e insuficiente para garantir a perenidade da espécie humana. Por essa razão, Zeus ordenou a Hermes que trouxesse aos humanos o pudor e a justiça para completar o que faltava da arte política e da capacidade de viver em conjunto.
        O que se mostra relevante para nós, é saber o que devemos fazer no domínio das biotecnologias, qual nossa responsabilidade induzida pelo desenvolvimento das tecnociências, como pensar criticamente as injunções e transformações provocadas pelos avanços tecnológicos, até onde avançar com as pesquisas com embriões humanos, quais pesquisas permitir, ou que juízo fazer sobre as pesquisas gênicas: as terapêuticas e as destinadas ao avanço do conhecimento e eventual cura de doenças degenerativas, que cuidados tomar com os alimentos transgênicos, com a transferência de genes de uma espécie para outra, são questões inéditas na sua natureza e que exigem um outro tipo de perplexidade. Portanto, é grande o desafio da Bioética, fenômeno cultural que muito se tem escrito e debatido.
        As biotecnologias, realmente, desde há poucos anos, vêm conferindo ao ser humano um poder jamais visto e imaginado. Uma potencialidade cujo traço essencial é a ambivalência: elas encarnam nossas esperanças mais cobiçadas, a saber, melhorar a qualidade de vida superando doenças e prolongando o viver; e, ao mesmo tempo, podem provocar temores incalculáveis, intervindo na própria identidade de cada indivíduo e abalando potencialmente todo o eco-sistema. As biotecnologias são um misto de atração e repulsa. Dinâmica constringente da técnica que provoca sentimentos contrários: uma forte atração por um super poder ao alcance dos humanos, conjugados com um temor fantasmagórico pelas suas conseqüências.
        Nas duas últimas décadas, dois termos de profunda repercussão e alcance ocupam a cena: ética e genética. Os triunfos da genética abalam consideravelmente os alicerces da ética. Niklas Luhmann, fala de “paradigma perdido” (LUMANN, 1990: 210). Sério descompasso se estabelece entre as inovações alcançadas pelas investigações científicas e a capacidade crítica da racionalidade humana. A propósito, Volpi afirma, referindo-se à obra de Luhmann:

O sentimento difuso de uma carência de orientação ético-moral e de fundamentação de regras, de normas e de princípios do agir humano indica claramente que o paradigma ético-moral está hoje duplamente perdido: no plano de sua fundação tanto quanto no plano de sua aplicação, na dimensão ético-teórica e também na dimensão moral-prática  (VOLPI apud HOTTOIS, 1993: 161).
                                 
        No momento é a questão das realizações das tecnociências, das inovações da biotecnologia e uma dinâmica descritos não mais como de uma realização da condição humana, mas de transgressão, de transcendência aberta ao infinito, que nos lança sérios desafios. Muitos se assustam, sentem-se incomodados e chocados, pois está quase rompida a tranqüilidade psicológica de uma representação baseada em convicções em um espaço teórico e ideológico até então solidamente ancorado num fundamento dogmático, transcendente, onto-teológico, temos consciência de que as invenções biotecnológicas fazem pesar um clima de incertezas sobre o futuro da humanidade, por outro lado, é um desafio assumir, no campo da filosofia, as exigências desse tempo presente no qual convivem a dinâmica de um processo tecnocientífico globalizado e vasto número de tradições e culturas diversas (VON ZUBEN, 2006: 209-211).
        Como ponto de partida desse tema: Bioética e Bio-Segurança: as tecnociências e a transcendência de limites, temos o suposto de que o ser humano tem dupla faculdade de transcendência: a primeira faculdade, pela dimensão simbólica, por meio dela, o homem como ser linguajante, logon echon de Aristóteles, como ente de linguagem, verbaliza sua condição de existente sem modificá-la; a segunda faculdade, levada a efeito pelas investigações tecnocientíficas, é a operatividade transformadora, revelada, de modo excitante, nas biotecnlogias, na nano-tecnologia e na informática. Na sua efetividade essa operatividade tem provocado impactos constrangedores nas representações culturais herdadas, a reação dessas é a tentativa de submetê-las no seu horizonte ético-semântico.
        Desde a metade do século XX, tem-se instaurado um clima de incerteza, de mal-estar e até mesmo de revolta com a situação instaurada pelas pesquisas científicas nas áreas das biociências; há muitos exemplos dos abusos contra a dignidade da pessoa humana. A emergência da Bioética se deu nesse cenário sombrio como reação racional à crise instaurada nas atividades de pesquisas e no campo clínico e terapêutico. Em seu Princípio de Bioética, Tristam Engelhard fala de uma catástrofe fundamental em razão do duplo fracasso da Fé e, sobretudo, da Razão; e que vivemos num mundo da diversidade irredutível, um mundo de estrangeiros morais (VON ZUBEN, 2006: 212).
        Para o teólogo Márcio Fabri dos Anjos, “os avanços científicos trouxeram uma qualitativa mudança na estrutura do poder, mostrando que sua excelência se encontra no saber, principalmente no saber fazer” (ANJOS, 2005: 11). Isso tem feito com que a pesquisa científica hoje se torne uma grande corrida estimulada pelos interesses principalmente em seus resultados e aplicações. Hoje, portanto, seria impossível avaliar eticamente as biotecnologias sem perguntar pela rede de interesses, não enfatizar apenas seu lado nobre e humanitário que certamente se pode encontrar. Mas detectar também suas artimanhas, como as promessas para além do realizável; a ocultação de riscos e danos; a concorrência sem inquietações éticas, especialmente quanto aos métodos e quanto às conseqüências. Se por um lado não se pode satanizar a comercialização dos resultados, seria por outro lado ingenuidade avaliar eticamente as biotecnologias, esquecendo o grande jogo de interesse que as acompanha.
        Referindo-se à lei de biossegurança votada recentemente no Congresso brasileiro, Fátima de Oliveira, cita a médica Ana Regina Reis dizendo:

Não é à-toa: assim como querem controlar e patentear sementes vegetais, e já dominam as animais, querem controlar, totalmente,as humanas. Passaram décadas esterilizando mulheres (por não oferecer outros métodos não definitivos de contracepção), agora vão oferecer bebê de proveta para as esterilizadas. A fertilização in vitro, expõe as mulheres a dores enormes de hormônios, assim como no caso das sementes, que só crescem com fertilizantes químicos. Lucra a Monsanto das sementes humanas, a Serono, empresa farmacêutica suíça, entre outras. Pagam, trabalhadores, um SUS que nem tem algodão para curativo de muitos. Pagam, mulheres com riscos e conseqüências pouco conhecidas desses processo que tem 90% de fracasso! Um dos hormônios usados na fertilização in vitro é produzido por ratas com gene humano. Transgênicos de um lado e de outro, além disso, a indústria das células-tronco “que vão curar tudo”, precisa de embriões. Muitos embriões. A indústria farmacêutica também. É o biobusiness, o bionegócio, primo do agronegócio. Os camponeses sempre souberam que a fertilidade da terra é unida à fertilidade das mulheres, não é? Então, essa é a minha sugestão de artigo: as sementes humanas, vegetais e animais sendo industrializadas. É por isso que os embriões humanos estavam na Lei da Monsanto (ANJOS, 2006:  11).    

Entende-se que a preocupação da Igreja Católica encontra-se em torno da nova Lei de Biossegurança de número 11.105, aprovada recentemente pelo Congresso Federal e sancionada pelo excelentíssimo presidente da República, Sr. Luis Ignácio Lula da Silva no dia vinte e quatro de março de dois mil e cinco (24 de março de 2005), demonstra o empenho, por parte da sociedade, em estabelecer parâmetros éticos, tendo em vista a produção de vida e vida com qualidade. Concretamente, a nova Lei de Biossegurança, situada em contexto de moderna biotecnologia, aprova processos que envolvem organismos geneticamente modificados e questões relativas a pesquisas científicas com células-tronco embrionárias. Desta forma, adquire traços mais específicos em relação á abrangência temática que até então era atribuída à palavra biossegurança quando referida a ambientes industriais, hospitalares, laboratoriais, hemocentros, universidades, entre outros, tendo por objetivo a prevenção dos riscos gerados pelos agentes químicos, físicos e ergonômicos, situados em processos onde o risco biológicos se faz presente ou não.
        Tal “logus” da palavra biossegurança situa-se no âmbito da medicina do trabalho, engenharia de segurança, saúde do trabalhador, higiene industrial, engenharia clínica e infecção hospitalar, mostrando que a conceituação da palavra biossegurança, que surge na década de setenta para discutir os impactos da engenharia genética na sociedade, ao longo dos anos, sofre alterações em função das necessidades humanas. 

        Na figura de Prometeu, temos, também uma ambivalência: de um lado, sua generosidade, sua coragem, sua audácia e sua revolta em favor dos humanos contra os deuses e sua presença nos albores da criação da civilização técnica; por outro lado, sua imprudência, seu orgulho, sua obstinação exagerada que o levou a ser comparado ao irmão Epimeteu, o distraído.
        Entretanto, visualiza-se no mito um traço, talvez o mais característico de Prometeu, que é a astúcia (métis) (VON ZUBEN, 2006: 36-37).
        No plano da ética, esse mito nos fornece um horizonte propício para uma reflexão sobre a técnica, e mais precisamente, sobre as tecnociências e o seu espaço significante no mundo atual. Prometeu é o emblema da técnica como astúcia mostrando traços da ambivalência com que estão atualmente assinaladas as tecnociências, que comportam a mistura de conquistas positivas para a humanidade, e, ao mesmo tempo, efeitos funestos e destrutivos.
François Jacob observa com precisão:

É o que se observa hoje em dia com freqüência. Alguns dos males que a ciência e suas aplicações provocam nascem do desejo em fazer o bem. Os primeiros radiologistas, por exemplo, não tinham idéia de que os raios X poderiam provocar câncer. Nem os químicos que os adubos destinados a melhorar as colheitas seriam causa de temíveis poluições. Nem os médicos que o uso generalizado de antibióticos provocaria a seleção de microorganismos resistentes à sua ação. E ninguém poderia desconfiar que a rapidez e a amplitude da expansão que a medicina e saúde pública a conheceram, desde o fim do século XIX, conduziram à superpopulação, uma das mais graves, ameaças ao nosso planeta  (JACOB, 1998: 110).

        Dá-se no plano da métis, da astúcia, o enfrentamento entre o titã Prometeu e Zeus. Garcia Gual, citado por Medel, observa:

Enquanto a glória de Zeus reside no fato de ter conquistado o poder supremo, a glória de Prometeu está em seu amor pelos humanos, o que o levou a oferecer-lhe o fogo, a esperança e as técnicas. Filantropia (palavra que aparece pela primeira vez em grego na tragédia de Ésquilo) e filotecnia (termo documentado, posteriormente, por Platão) são os motivos do Titã. Seu excessivo amor pelos humanos atraiu a inimizade dos deuses. Porém, a aposta era digna (MEDEL).

        Desde a aurora da civilização humana, a técnica, como presente de Prometeu, reflete, de fato a ambivalência como traço característico: o bem misturado com o mal. Ao mesmo tempo em que ajuda os humanos, leva consigo a cilada da destruição, da dor, do sofrimento, da morte. Vernant observa que “O roubo do fogo exprime, entre outras coisas, a nova condição humana em seu aspecto duplo, positivo e negativo” (VERNANT, 2002: 315). É um poder perigoso; refletindo a transgressão, a ruptura. De fato, ela proporciona aos homens um sentimento de poder, uma potência, cuja contenção nem sempre se torna fácil. E Vernant acrescenta:

A inteligência de Prometeu parece feita, pelo contrário, de cálculo e de astúcia de pensamentos fraudulentos. Sua previdência prepara frequentemente um engano. Aliás, sua astúcia provoca catástrofes que se voltam por fim contra ele; a tal ponto que ele aparece por vezes como imprudente e irrefletido (VERNANT, 2002: 318).

        Vive-se, atualmente, numa época paradoxal, quase numa encruzilhada no processo civilizatório do homo sapiens. De um lado, a sensação de potência maximal e, de outro, a percepção de fragilidade geradora de incertezas. A técnica é um dos produtos ambivalentes de nossa civilização, pois libera o homem de enorme dispêndio de energia, confundindo-a às máquinas, de outro, vem subjugando a sociedade à lógica quantitativa dessas mesmas máquinas.

      A intenção ética que anima todo projeto da Bioética traz a suposição de que o panorama englobante se chama bem-comum. O cenário conceitual que dá suporte ao projeto bioético está contido na Declaração Universal dos Direitos do Homem.
        Segundo Von Zuben, devem articular-se fortemente a audácia prometeica e a prudência clássica. Cabe citar, a urgência de se indagar sobre novos deveres para com a situação de sofrimento de um número crescente de indivíduos acometidos por doenças com perspectivas na área de genética e procriática. O desenvolvimento de pesquisas visando sanar essa situação é um dever ético de primeira grandeza, no mesmo plano de importância que o da promoção da dignidade humana.
        Impõe-se cada vez mais a consciência da relevância e da necessidade de apoio ao desenvolvimento das investigações científicas, sobretudo na área das biociências, da genética, da biomedicina. Somos responsáveis pela proteção e pelo incremento constante do direito fundamental e da liberdade de investigação visando ao bem comum, ao pleno bem-estar de cada indivíduo em todos os planos de sua existência, respeitando-se os limites instituídos deliberadamente de eticidade e de cientificidade. A tarefa da filosofia, de acordo com Von Zuben, é assegurar amplo debate sobre a pertinência e a relevância de pesquisas em certas áreas, delicadas sem dúvida, mas promissoras (referindo-se às pesquisas sobre células-tronco embrionárias). Von Zuben: “Chego a pensar como não ética a decisão de se proibir radicalmente determinadas investigações tomando-se por base unicamente argumentos de ordem metafísico-teológica. O mito de Prometeu nos ensina que, de início, a inovação foi entendida como transgressão de uma ordem preexistente, a autoridade de Zeus, chefe do Olimpo. Hoje vejo nossa audácia mais como uma auto-otimização do poder da racionalidade humana na busca de novos horizontes transcendendo limites” (VON ZUBEN, 2006: 229-231).
        A ética não se presta a ser utilizada para a luta contra as inovações. Não se constrói o futuro sobre o reconhecimento da tirania de uma opinião sem nada fazer para avaliá-la criticamente e mesmo opor-se a ela, não por ser uma opinião, mas por impor-se dogmaticamente.
        Mais do que apresentar respostas seguras, moveu-me a curiosidade de entrever perplexidades e incertezas. Creio que só essas perplexidades convidam e provocam outras idéias. É esse diálogo constante que faz a dinâmica do filosofar.



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