terça-feira, 23 de janeiro de 2018

A muralha do direito: a “juridicização” das sociedades modernas.


        Por meio da seguinte proposição: “O tempo da evolução das referências éticas não está em harmonia com o das construções das normas jurídicas, nem com o avanço dos conhecimentos científicos”, afirmada pelo CCNE em seu parecer nº. 67 de 18 de janeiro de 2001 sobre o anteprojeto de revisão das leis de bioética pelo Parlamento francês, observa-se a forma falsamente evidente de uma constatação: a ambiguidade da relação entre a ética (ou moral) e as ciências e técnicas modernas.
        Na maioria das sociedades democráticas, em ritmos diversos, tem-se presenciado um apelo forte e maciço para estender a regra do direito a domínios onde até então não se utilizava. Exerce-se com a mesma amplidão e no mesmo grau, processos onde outrora simplesmente não se pensava, quando os recursos de mediação e conciliação podiam apoiar-se nos costumes, na moralidade admitida correntemente ou na prática do compromisso. Temos, assim, a “juridicização” das sociedades modernas (VALADIER (b), 2003: 86-87). O aumento do poder do juiz, sem dúvida mais imaginário do que real, simbolizaria bem esse fenômeno. Mesmo que essa “juridicização” vá em sentido único, manifestando cegueiras inquietantes ou tenha suas zonas de sombra, é um fato comprovado que ela parece substituir-se à impotência de nossas sociedades para regular seus problemas, ao recorrer a uma referência moral ou falha, ou ausente, ou demasiado diversificada para servir de norma pacificadora das tensões e dos conflitos sociais. Some-se a isso a da multiplicação de processos, o abarrotamento dos tribunais, exigindo a multiplicação das leis e suas constantes reformas.
        Observa-se bem quanto é ilusório sonhar com uma harmonização das temporalidades próprias aos avanços científicos, à ética e à moral [1], e ao próprio direito. Diante do turbilhão de novas descobertas, parece antes prudente não precipitar as disposições jurídicas, sob pena de desestabilizar o aparelho do direito e chegar ao inverso das intenções: multiplicar as normas que ninguém mais respeita por não conhecer sua lógica e sua coerência.
        Embora as referências éticas evoluam sob a pressão de numerosos fatores, não se faz evoluir os costumes e os princípios éticos por decretos: ali ocorrem evoluções lentas e não reguladas por alguma mão invisível. Deve-se à moral propriamente dita fornecer recursos intelectuais de um julgamento fundado dessas evoluções, pois todas essas evoluções não podem ser avalizadas sob pena de um conformismo que renega a consciência moral; e, se o julgamento é delicado, impõe-se em nome dos valores fundamentais que se resumem no respeito pela pessoa e por sua dignidade (VALADIER (b), 2003: 120).
    Construindo um “link” entre os acontecimentos passados para um acontecimento polêmico recente, temos como exemplo do fenômeno da “juridicização” e dos interesses envolvidos as pressões de grupos conservadores ou favoráveis, bem como o lobby dos grupos financeiros que patrocinam a pesquisa científica; o “processo que instituiu a Lei de Biossegurança” (lei nº. 11.105/2005), que acabou sendo “juridicamente” decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) contrária às pesquisas com células-tronco embrionárias no país, sob a alegação de que elas violam o direito à vida.
        Durante a votação do projeto na Câmara, em 02/03/05, estavam presentes membros da Associação Brasileira de Distrofia Muscular e do Movimento em Prol da Vida. Pessoas que sofrem de degeneração progressiva do tecido muscular e familiares de portadores de doenças neurológicas, como o mal de Parkinson e o mal de Alzheimer, além dos diabetes, que podem ser “beneficiadas” pelas pesquisas com células-tronco, pressionando a aprovação dessa Lei de Biossegurança.
        Segundo o ex-Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles, tal Lei não observa a inviolabilidade do direito à vida, porque o embrião humano é vida humana, e faz ruir o fundamento maior do Estado democrático de direito. Com isso, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade foi movida contra a mesma em 2005.
     Os especialistas a favor da Lei defenderam a importância das pesquisas tanto de células-tronco embrionárias quanto das células-tronco adultas, já que cada uma apresentaria suas próprias limitações e o estudo de ambas seria muito importante para o desenvolvimento de novas terapias. Além disso, foi exaltado que os embriões utilizados para gerar tais células seriam aqueles inevitavelmente descartados pelas clínicas de fertilização in vitro.
        A sugestão apontada por esses pesquisadores para definir o início da vida deveria ser baseada no conceito legal e vigente para a morte – definida pela interrupção de funcionamento do cérebro. O início da vida poderia ser definido, portanto, pela data de início da formação do sistema nervoso, a partir do 14º dia após a fecundação.
    Os participantes contrários à Lei e à utilização das células-tronco embrionárias defenderam que a vida se inicia no momento de fecundação, e justificaram que as células-tronco embrionárias seriam dispensáveis em virtude do potencial terapêutico das células-tronco adultas.
       Essa Lei, aprovada por deputados e sancionada pelo presidente Luis Ignácio Lula da Silva, autoriza, em seu artigo 5º para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, desde que atendidas as seguintes condições: sejam embriões inviáveis; ou sejam embriões congelados há três anos ou mais, a contar da data da publicação desta Lei, isto é, após 24/3/2005, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem três anos, contados a partir da data de congelamento, isto é, antes de 24/3/2005.  Portanto, deve-se “obedecer” o prazo de 3 anos de congelamento.
        Podemos perceber que o dispositivo determina duas condições alternativas. Assim, é permitida a utilização de embrião humano produzido por fertilização in vitro desde que atendidos um ou outro requisito. A lei, porém, em seu § 1º, estabelece que em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores e em seu § 2º determina que as instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.
      Dessa forma, como condição para a pesquisa lícita com embriões, temos o atendimento alternativo das condições fixadas nos incisos 1º e 2º do artigo 5º da Lei, aliado à concordância dos genitores do embrião e à aprovação dos projetos nos comitês de ética e pesquisa.
        Parágrafo 3º - É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no artigo 15 da Lei nº. 9.434 de 4 de fevereiro de 1.997.
        Nota-se aqui, que a dignidade humana sociologicamente está ameaçada.
    Segundo o teólogo Márcio Fabri dos Anjos, a reflexão sobre a dignidade deve evidentemente ir além do âmbito teórico para não incorrer em ingenuidades. A partir do contexto social em que se inserem hoje as biotecnologias, verifica-se a força dos interesses econômicos e do exercício do poder para controlar e tirar proveito. Não se pode contar com o compromisso com a ética nos procedimentos, embora, hoje, muitos grupos se empenhem por ela. Falsas promessas em torno de benefícios de biotecnologias, falsificações nos resultados de pesquisas e chantagens fazem parte deste cenário. Não bastasse isso, há de frisar o ridículo a que se chegou com a recente lei de biossegurança: quem quiser conhecer o dispositivo legal que rege o uso de células embrionárias humanas deve procurar uma legislação que trata sobre modificações genéticas de sementes na produção agrária (ANJOS, 2006: 205).
        É lamentável que o Congresso Nacional tenha aprovado o artigo 5º da Lei de Biossegurança, para a utilização de embriões humanos, para experiências científicas.
        Entretanto, não há comprovação científica de que as células-tronco embrionárias sejam mais eficientes. Em 22 de agosto de 2005, a imprensa divulgou que cientistas americanos da Faculdade de Medicina de Harvard conseguiram criar uma nova célula-tronco embrionária humana a partir de uma célula de “pele comum” isso poderia descartar a necessidade de utilização de embriões humanos (Folha de São Paulo, 22.08.2005: A 25).
        A nova Lei de Biossegurança foi aprovada sem que se levasse em conta as premissas filosóficas e teológicas, e as bases científicas ao tratar o embrião humano como simples coisa de experiência científica.

Você continua escolhendo Barrabás e não percebe!

Ante a escolha entre Cristo e Barrabás (VALAIDER (b), 2003: 88), os juristas são os primeiros a deplorar o que chamam, com um barbarismo deselegante, a juridicização das sociedades modernas. Em quase todas as sociedades democráticas, embora em ritmos diversos, assiste-se a um apelo sempre mais forte e maciço para estender a regra do direito a domínios onde até então não se encontrava para exercer-se com a mesma amplidão e no mesmo grau.
     Em parte, sabe-se também que poucas sociedades democráticas escapam à mesma juridicização. É que diante dessas evoluções que domina mal, se é que as domina, o indivíduo sente-se desprotegido, nu, exposto: entregue não ao matagal das leis obscuras, mas à negligência dos peritos em matéria alimentar, farmacêutica e, sobretudo, no que diz respeito às células-tronco embrionárias humanas, aos abusos dos comerciantes ou dos empresários da diversão, aos riscos das técnicas diversas que povoam o espaço cotidiano, etc (VALADIER (b), 2003: 89).
   O direito deixa de ser um direito porque não está mais firmemente fundado na dignidade inviolável da pessoa, mas se faz dependente da vontade do mais forte. O direito perde, pois, sua legitimidade quando não é mais a tradução da moral e da verdade do homem: caricatura de direito que transforma o Estado de casa comum que deveria ser, em Estado tirano. Essa extenuação do direito resulta de fato na extenuação da democracia, apesar das aparências mantidas: Tudo parece passar-se no mais firme respeito à legalidade, pelo menos quando as leis que permitem o aborto, as pesquisas com células-tronco embrionárias e a eutanásia são votadas segundo as regras pretensamente democráticas. Na realidade, estamos apenas diante de uma trágica aparência de legalidade, e o ideal, democrático, que só é tal se reconhece e protege a dignidade de toda pessoa humana, é traído em seus fundamentos mesmos (VALADIER (b), 2003:100).




[1] Ética e Moral, um dos termos vem do latim (moral) e o outro do grego (ética), ambos se referem, de uma maneira ou de outra, ao domínio comum dos costumes. Mas, se não há acordo quanto à relação, hierárquica ou outra, entre os dois termos, há acordo sobre a necessidade de dispor de dois termos. Toma-se o conceito de moral como o termo fixo de referência e atribuir-lhe uma dupla função, a de designar, por um lado, a área das normas, ou seja, dos princípios do permitido e do proibido, e, por outro, o sentimento de obrigação como face subjetiva da relação de um sujeito com as normas. Toma-se o conceito de ética partindo-se em dois, um ramo designando o que está a montante das normas – ética anterior – e o outro ramo designando o que está a jusante delas – ética posterior.
Ética anterior apontando para o enraizamento das normas na vida e no desejo, a ética posterior visando a inserir as normas em situações concretas (CANTO-SPERBER, Monique, 2007: 591).
Conforme Dicionário Houaiss temos:
Ética: no empirismo, materialismo ou positivismo, estudo dos fatores concretos (afetivos, sociais etc.) que determinam a conduta humana em geral, estando tal investigação voltada para a consecução de objetivos pragmáticos e utilitários, no interesse do indivíduo e da sociedade; e conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade.
Moral: parte da filosofia que estuda o comportamento humano à luz dos valores e prescrições que regulam a vida das sociedades; que segue princípios socialmente aceitos; que denota bons costumes, boa conduta, segundo os preceitos socialmente estabelecidos pela sociedade ou por determinado grupo social; e que denota honestidade; correto.

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