terça-feira, 19 de dezembro de 2017

O fenômeno da secularização e da modernidade



Estou certo de que não se presta nenhum serviço a uma pessoa que "vibra" com a religião quando se esconde dela, como aliás dos demais homens, que seu destino é viver numa época indiferente a Deus e aos profetas.

 Max Weber, A ciência como vocação.



A constante publicação de documentos do Magistério Católico e a atuação de militantes voltados ao campo da bioética com o objetivo de publicar a pesquisa científica não pode ser vista sem uma rápida releitura sobre o fenômeno da secularização. A visão moderna, impulsionada pelo progresso técnico e pelo caminho sem volta do “processo de secularização” (Para Menozzi o termo utilizado frequentemente para indicar o processo histórico pelo qual a sociedade e a cultura modernas se libertaram do controle religioso. O vocábulo não goza de simpatia nos meios confessionais, sobretudo no âmbito católico, pois seu significado envolve a prevalência da razão sobre o mágico, fazendo com que, em última análise, o termo acoberte um desejo de fazer oposição radical à Igreja), fizeram emergir uma nova cultura na qual a religião encontra-se cada vez mais excluída da esfera pública. Segundo, Bellino, surge um cenário em que a ética do caráter sagrado da vida, fundada na concepção desta como dom de Deus e respeitadora do finalismo intrínseco natural, enfrenta a ética da qualidade da vida, centrada na autonomia do indivíduo em seu bem-estar como objetivo último.
      Este processo recebeu grande contribuição dos filósofos racionalistas a partir do século XIX, também conhecidos como mestres da suspeita, que equiparavam a ação pastoral da Igreja à de uma potência política e explicada conforme estes objetivos. O psicanalista Jurandir da Costa Freire destaca-se as críticas à religião destes pensadores: religião como projeção da natureza humana para Feuerbach; ópio do povo para Marx; neurose obsessiva para Freud e por fim, Niezstche, que decretou a morte de Deus, sendo a Igreja o seu túmulo.
      Entretanto, o resultado deste processo chegou ao auge em um crescente afastamento da influência da religião na vida das pessoas, aliado a um constante processo científico, delimitado pelo determinismo da técnica – conhecido também como imperativo tecnológico – segundo o qual tudo o que pode ser feito tecnicamente será feito de uma forma ou de outra. A nascente fantasia de um controle e melhoramento da evolução humana, mediante a crença da racionalidade científica e no racionalismo instrumental fizeram nascer ecos como o do filósofo Francis Bacon: (Explicando o termo utilizado, citado por Bellino, o racionalismo instrumental foi assumido pelo pensamento moderno como um de seus principais guias. Significa seguir a racionalidade ou a lógica dos instrumentos que produzimos; desde sua hipóstase, pode-se predizer seu crescimento que é sinônimo de progresso; todos os outros princípios são falsos ou poesia moralizante).
      Para Bacon, que a pessoa humana recupere seu direito sobre a natureza, que lhe compete por legado divino; que a pessoa humana se dê o poder; a reta razão e a sadia religião governarão o seu uso.
      Note-se que, na visão de Bellino, a militância conservadora seria uma resposta da Igreja ao processo político, cultural e social que a afasta do poder decisório, e também uma reação ao projeto da ciência moderna de tornar os homens, conforme Descartes, bem como precaver-se do temido mito do poder como supremo valor e norma de ação: tudo que é possível torna-se também moralmente auspício.
      De acordo com Ratzinger, ao agir político e social do homem não pode ser concedida uma plena autonomia em relação à religião cristã: entregue a si mesmo para a construção da cidade terrena, o homem não pode senão enveredar pelas vias de uma crise que conduz à destruição e dissolução da sociedade.
      Conforme atesta o pensador Stuart Hall à medida que a Igreja perdeu seu papel de Estado como formulador de políticas, à semelhança do fenômeno que dissolve identidades políticas nacionais, a via que reúne moralismo e ortodoxia religiosa parece ser a única saída viável, quando questiona as mudanças que o processo de globalização acarreta às identidades coletivas e pessoais.
      Seguindo essa linha de raciocínio, numa era em que a integração regional nos campos econômicos e políticos, e a dissolução da soberania nacional, estão andando muito rápido na Europa Ocidental, a crise dos regimes comunistas na Europa Ocidental e a crise da Antiga União Soviética foram seguidos por um forte revival do nacionalismo ético, alimentado por ideias tanto de pureza racial quanto de ortodoxia religiosa.
      Diante à crise da modernidade, diversos segmentos eclesiais dirigidos, sobretudo no papado de João Paulo II, esquematizaram uma nova estratégia, bem mais complexa do que a simples oposição à modernidade, que caracterizava o antimodernismo tradicional da Igreja Católica. Constata-se neste papado, diferentemente do anterior, uma profusão de documentos condenatórios à ciência, às novas possibilidades trazidas pela biotecnologia, para não falar do período em que mais a Igreja recuperou seu conservadorismo, para não falar de sua forte influência no cenário internacional. Mesmo porque, o mundo católico ainda se baseia no pressuposto dos líderes da reação contrarrevolucionária: para Menozzi, não há verdadeira civilização nem autêntica convivência humana fora da cristandade, fora de uma sociedade onde a Igreja dite as regras e valores do viver social.
      Note-se que a crítica não é mais feita em nome dos valores da tradição, e sim em nome dos direitos humanos, que são, hoje, pisoteados, e do bem da humanidade, vítima de catástrofe no ecossistema, provocadas pela cobiça do homo faber, que quer dominar o mundo. Inquietudes quanto ao presente e expectativas quanto ao futuro alimentam uma nova questão normativa, para Hervieu-Légier, é uma necessidade de autoridade, que supera as fronteiras dos ambientes católicos, para tornar-se uma questão ética partilhada por toda a sociedade.
      Conforme os eruditos, a questão ética se reveste de axiomas filosóficos para tentar recolocar a ética da espécie humana frente aos novos paradigmas advindos da prática tecnológica. Dentre estes, destaca-se o trabalho do filósofo Jürgen Habermas, que defende ser fundamental estabelecer uma distinção entre a dignidade humana e a dignidade da vida humana com o objetivo de situar os riscos pelos quais passa a capacidade de auto-compreensão do ser humano como espécie e vivência do coletivo. Para Habermas, a dignidade humana representa uma condição moral ou jurídica que aponta as relações entre sujeitos portadores de direito e deveres. Já a dignidade da vida humana transcenderia os limites das práticas morais acordadas, presente nos estágios pré-pessoais em que os indivíduos estão ainda em formação. A preocupação do pensador alemão é saber se a tecnicização da natureza humana altera a auto-compreensão ética da espécie de tal modo que não possamos mais nos compreender como seres vivos eticamente livres e moralmente iguais, orientados por normas e fundamentos.
      No plano político, as modificações e desafios da secularização, no entender de Habermas, sugerem um outro cenário para um mundo que ele vê agora como pós-secular. Para ele, os acontecimentos de 11 de setembro tocaram uma corda religiosa no âmago da sociedade secular, levando a um incremento do sentimento e da prática religiosos em escala mundial. Uma reação do mesmo tipo: aquela dos tradicionalistas em face do avanço inexorável da secularização.  Quem quiser evitar uma guerra entre civilizações precisa se lembrar da dialética inacabada do nosso próprio processo ocidental de secularização.
      A Igreja, por sua vez, levanta sua crítica à racionalidade moderna, feita não mais por motivos defensivos, e sim em nome das promessas da humanidade não mantidas pelo progresso, com as características de uma contra-utopia. Contudo, o próprio determinismo tecnológico e o poder da racionalidade instrumental precisam ser vistos numa perspectiva reflexiva, impulsionados pela ampla capacidade dos meios de comunicação.
      Conforme aponta Martelli: a observação atenta dos fenômenos sociais leva à conclusão de que a racionalidade instrumental reine inconteste somente nos meios mais especializados e, no entanto, deve conviver com uma pluralidade de formas simbólicas que lhe podem ser reduzíveis, as quais prosperam justamente por causa da relativa autonomia que distingue o campo cultural, caracterizado por uma crescente intensidade de fluxos comunicativos.
      Em resumo, o discurso militante e conservador da Igreja não deve ser visto apenas dentro da ótica de um poder que pretende reocupar um espaço perdido ou de um código religioso que planeja avançar sua influência para além de seus domínios eclesiásticos no complexo feixe de relações sociais. A militância neste sentido é vista por alguns como um teísmo com funções públicas, ou seja, uma instituição que não apenas difunda a mensagem evangélica, mas que também guarde a moral de uma dada sociedade, valorizando os recursos de senso comum, diz Guizzardi, a fim de reunificar linguagens especializadas e da formação de vontades coletivas nas grandes opções da política.
      A solução está em construir uma ética voltada, de fato, ao interesse da vida que aí se encontra, como também o próprio cosmos, e que não esteja a serviço dos interesses da comunidade científica, dos laboratórios ou de seus oponentes, os que postulam valores morais.
      O que significa que haja limites éticos da intervenção do ser humano na natureza, e que a sociedade deva manter-se vigilante sobre os rumos da ciência. Não se esquecendo, sob nenhuma hipótese, de um passado de manipulações, esterilizações e experimentos eugenistas e racistas, ocorridos tanto na Alemanha quanto nos Estados Unidos. A esse respeito, estudiosos da bioética, adeptos de uma reflexão autônoma dos princípios éticos, sem as pretensões moralistas institucionalizadas, resultado da transformação das sociedades laicas e multiculturais, admitem que os limites dessa autonomia devem se equiparar ao monitoramento contínuo da pesquisa científica com seres humanos. Isto é, uma conduta vigilante da ciência, uma prudência atuante e não paralisante.

      Em síntese, este debate discursivo, repleto de estratégias discursivas desqualificatórias e repletas de imagens vampirescas e condenações escatológicas, está mal colocado e restrito a grupos sociais dos quais o real interesse e interessado da ciência se afasta cada vez mais – a opinião pública e o seu ideal por uma vida digna. Afinal, só se pode falar em dignidade da vida humana se esta possui, aqui e agora, nem antes da história terrena ou num doce porvir, vida digna para todos.


















FONTE:Ilustração:https://4.bp.blogspot.com/-JoORH4hjNHA/Vzh-
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FONTE:Ilustração:https://www.google.com.br/search?biw=1366&bih=613&tbm=isch&sa=1&ei=W4QIWt2zAcGkwgTQ3bLgCA&q=bela+imagem+sobre+vida+digna+para+todos.&oq=bela+imagem+sobre+vida+digna+para+todos.&gs_l=psy-ab.12...197114.206216.0.208840.18.18.0.0.0.0.194.2400.0j15.15.0....0...1.1.64.psy-ab..3.0.0....0.GcsXt5HQkUA#imgrc=zZX7BLVTOwy5zM:


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