As Frágeis Muralhas das instituições éticas e jurídicas
A tríade do pessimismo: economia arcaica, política corrupta e instituições frágeis.
A palavra “valor” é o vestígio de uma impossibilidade de nos entregarmos a uma garantia reconhecida por todos: a natureza, a razão, Deus, a História; é o vestígio de uma situação na qual todas as figuras da transcendência estão confundidas (VALADIER (a), 1997: 9-10).
Valor, definido por Rokeach como uma
crença duradoura em um modelo específico de conduta ou estado de existência,
pessoalmente ou socialmente adotado, embasado em uma conduta preexistente.
Quanto ao valor, podemos dizer que ele
não é aquilo que permite que o homem viva, mas aquilo sem o qual ele não
poderia viver, e que ele deve dar-se sem se fixar nele de maneira absoluta, sob
a pena de negar de novo o contexto das coisas e de produzir condutas infiéis às
necessidades do momento, logo da vida no futuro permanente. É, pois uma ficção
necessária à vida ou à sobrevivência; está condicionado pela vontade, fraca ou
forte, que o quer e que aceita ver nele a sua “criação”, ou que o nega para não
ter de confessar a sua força ou a sua fraqueza (VALADIER, 1997: 77).
Com esta afirmação o filósofo Claude
Lefort procura dizer que a referência ao
conceito de valor não é nem o fruto do acaso, nem o efeito de uma moda, nem
mesmo uma maneira cômoda para designar algo de outro modo. A palavra “valor”
faz-nos entrar num novo espaço filosófico e teológico em que a fronteira desse
domínio (filosófico/teológico) é transposta no momento em que todas as formas
da transcendência se apagam. A filosofia dos valores estaria então ligada ao
afastamento do divino, ou da transcendência, quer sob formas explicitamente
religiosas (Deus), quer sob formas mais profanas como a razão, a história ou a
natureza. Faria conjunto com uma modernidade desligada do transcendente e
enviaria novamente o homem para si próprio, caso este fosse incapaz de se
entregar a qualquer outra coisa que não os seus próprios recursos para orientar
a sua vida, individual ou coletiva, ou para compreender o universo e o destino
do mundo.
Bastante sintomático este diagnóstico
assenta-se num conjunto de postulados apresentados como sendo evidentes, tem
como dado adquirido que a transcendência proporciona uma base firme aos
valores, sem a qual é óbvio, os valores se desmoronam.
Será conveniente examinar se é
concebível restaurar uma filosofia da transcendência, por meio da denegação dos
princípios da modernidade filosófica, e se uma tal restauração não iria senão
agravar o mal, em vez de devolver uma base firme à ação e ao pensamento.
A grandeza do homem consiste em saber
carregar o peso da realidade; em descobrir nesta prova jamais concluída os
caminhos da sabedoria; em constatar que tudo o que se compreende a partir do
real e que se pretenderia satisfeito, é ilusão e mentira. Em contrapartida, os
valores da vida humana e os valores de quaisquer valores se revelam na tarefa
sublime de interrogar permanentemente, de atingir pouco a pouco a luz, não
através de um deslumbramento enganador, mas sim da descoberta maravilhosa de
que no mundo existe sempre mais do que aquilo que dele aprendemos, ou que os
pregadores da virtude dizem a seu respeito. Citando Paul Ramsey: “Não
deveríamos brincar de Deus antes de aprendermos a ser seres humanos; e quando
aprendermos a ser seres humanos, não desejaremos brincar de Deus” (PESSINI,
2006: 55).
Os nossos sistemas democráticos são
dotados de meios institucionais para fazer respeitar suas referências morais
fundamentais ou para mostrar em que ponto as novas legislações as violariam.
Assim, deveriam constituir uma sólida muralha contra os arroubos retóricos de
uns e as provocações temerárias de outros. Assistimos, há mais ou menos 20
(vinte) anos, ao estabelecimento e ao funcionamento de comitês de ética, em
diversos níveis da vida da nação; e que seriam uma garantia da conformidade das
decisões com nossos princípios morais essenciais.
Com o imenso trabalho realizado em
tantos lugares, é impossível avaliar e julgar a natureza das proposições feitas
aos que decidem. Portanto, a luz de Paulo Valadier, limitaremo-nos às
proposições do Conselho Consultivo Nacional de Ética (CCNE). Em primeiro lugar,
é impressionante constatar que, no nível de sua composição interna, os técnicos
e peritos profissionais dominam amplamente sobre os juristas e moralistas. Em
relação às cinco personalidades representantes das “famílias filosóficas e
religiosas”, o número de personalidades pertencentes ao setor da pesquisa soma
quinze, a que se acrescentam dezenove personalidades qualificadas por sua
competência e seu interesse em relação às questões éticas. A maioria deles é
formada por peritos médicos e cientistas. Como não ver o desequilíbrio entre
cinco personalidades de um lado e trinta e quatro de outro? Isso era verdade
desde a constituição desse comitê, mas os limites dessa organização apareceram
mais claramente com o tempo e à medida que as decisões se multiplicavam. Não só
as instâncias não-técnicas são minoritárias, mas a organização do trabalho é
tal que chegam muito tarde à deliberação, pois o essencial já ficou pronto em
outro lugar, ou antes, de sua intervenção. Mais grave, e sem dúvida ligado a
esse problema da composição, é que certos pareceres recentes testemunharam
hesitações, tergiversações ou falta de clareza; o que é inquietante quando se
trata de problemas realmente essenciais. Uma oscilação quando às bases
fundamentais do julgamento moral só pode desacreditar uma instância, no entanto
essencial. Parece de fato que uma sutil fronteira tenha sido ultrapassada em
muitas ocasiões.
A palavra “desordem” dada nesse Capítulo
I foi, de um lado, para marcar que as reflexões aqui consignadas não pretendem
constituir um tratado de moral em boa e devida forma, abrangendo o conjunto dos
dados que teriam de ser percorridos para manter-se no nível dos desafios.
Trata-se na verdade de falar da palavra
“desordem”, sem muito nexo, ou de evocar algumas preocupações surgidas de
constatações esparsas e não estritamente ordenadas da atualidade ética. Mas, de
outro lado, quer também evocar uma situação bem real, que é menos a de uma
confusão que a de uma desordem. Um dos efeitos dos sistemas democráticos está
em que a discussão pública autoriza as mais diversas opiniões, as mais
contrastadas (o que pode ser um bem), mas também com isso põe em pé de
igualdade o pró e o contra, legitimando assim as opiniões mais fantasistas, e
mesmo as mais aberrantes (o que tem consequências relativistas temíveis). Nesse
sentido, a democracia pluralista é desestabilizadora no nível mais radical,
provocando o sentido comum e tornando muitas vezes vão um debate pelas ciladas
dos demagogos ou dos sofistas, que nem sempre se consegue distinguir dos
protagonistas sérios. Ora, como se verá, não somente no nível da opinião
pública, mas no nível filosófico, desenvolvem-se argumentações que organizam de
algum modo essa desordem no plano do pensamento: por exemplo, é razoável falar
de pessoa para todo ser humano?
FONTE: Ilustração: https://www.google.com.br/search?biw=1366&bih=613&tbm=isch&sa=1&ei=YmL3Wa-CE4yMwgSJ6ZroDw&q=fotos++As+Fr%C3%A1geis+Muralhas+das+Institui%C3%A7%C3%B5es&oq=fotos++As+Fr%C3%A1geis+Muralhas+das+Institui%C3%A7%C3%B5es&gs_l=psy-ab.12...76400.90761.0.93201.26.25.1.0.0.0.318.3380.0j19j2j1.22.0....0...1.1.64.psy-ab..3.0.0....0.GqW0qJX0lCI#imgrc=VJr5B94KUUQj0M:
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